quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Donzela e o Cangaceiro - Cacá Araújo


Xilogravura: Carlos Henrique 

A DONZELA E O CANGACEIRO
Texto de Cacá Araújo* 

(OBRA PREMIADA COM A BOLSA FUNARTE DE ESTÍMULO À DRAMATURGIA)
_____________________

PERSONAGENS 
(em ordem de entrada)
Catirina
Mateus 
Pafúncio Pedregôso
Cafuçú
Feiticeira Catrevage
Vicença
Dona Colombina
Donzela Flor
Caipora
Troncho Sam
Edimundo Virgulino
Bode-Preto
Seu Jefrésso
_____________________


PRÓLOGO
A RAIVA DA CATIRINA

(A história é narrada, comentada e tem o cenário trocado por duas personagens do universo folclórico nordestino: a Catirina e o Mateus. Eles têm uma trama paralela à desenvolvida na parte principal da peça. São apaixonados, mas vivem brigando. Mateus entra e passa desconfiado, olhando para trás, apressado. Esconde-se atrás de uma árvore. Catirina chega à procura dele, muito zangada e espalhafatosa) 

Catirina:  

Ah, nêgo véi du meus ódio...
Num tulero inganação
Quando eu achá u trapacêro
Vô li dá um bufetão
Vai sê tão inorme a pisa
Quero vê si u cara lisa
Inda vem cum traição

(Olha atrás de uma árvore e, quando se distrai, Mateus tenta fugir de fininho e é descoberto por ela, que o pega pelo fundo das calças)

Achêi u grande covarde!
Mintiroso, traidô...

(Arrasta-o para o centro e lhe dá uns tabefes. Depois chora comicamente. Para, enxuga as lágrimas, respira fundo e dispara sua determinação)

Quero dirmanchá u noivado
Tu pur mim num tem amô

(Volta a bater em Mateus e o agarra pelo pescoço com as duas mãos)
Máis antes vô ti isganá
Adispôis vô ti isfolá
Seu cachorro inganadô! 

(Mateus consegue se soltar. Ele fala quase sem ar, debaixo de mais tapas, meio encolhido, amedrontado)

Mateus:

Ai, ai, ai, ui, ui, ai, ai... 
Num mi bata, meu docim
Tu maltrata um inucente
Qui sempre ti deu carim

(Referindo-se à platéia)

Us povo tão reparano
Já tem gente recramano
Num dê mais tabefe im mim... 

(Catirina cai em si e olha para o público, um tanto desconfiada. Lembra que precisa, com o noivo Mateus, fazer a apresentação da peça)

Catirina:  

(Desconfiada)

Eita, eu tava mi isqueceno

(Apontando para Mateus, ao público)

A cupa é desse trambêi
Qui véve mi ingabelano
Pur isso qui mi passêi...

(Outro tapa em Mateus. Dá uma rabissaca e continua falando para o público, agora com alegria, dirigindo-se a crianças e adultos)

Eu vejo gente miúda
I tombém gente graúda
É muita gente, eu contêi 

(Ri)

Mateus:

(Intrometendo-se gaiatamente)

I hoje tem ispetáclo
Bem aqui neste terrêro

Catirina:  

(Saltando ao lado de Mateus. Anunciando largamente)

É u’a peça di tiatro:
A Donzela i u Cangacêro!

Catirina e Mateus:  

(Cantando e dançando)

Vento assopra, mata dança
Passarim tem meludia
Onça, tatu, guaxinim 
Cobra, lagarto, cutia
Água iscorreno nu chão
Lua di noite i sol di dia

Vento assopra, mata dança
Passarim tem meludia

(Catirina, falando)

Pru belo Sítio Fundão
U mais verde du univesso
Vêi Pafúnço Pedregôso
Caba ruim, muito prevesso 

(Mateus, falando)

A istóra vai cumeçá
I u assunto é a natureza
Vai sê grande u muvimento
Tô dizeno cum certeza

(Catirina e Mateus, cantando e dançando)

Vento assopra, mata dança
Passarim tem meludia
Onça, tatu, guaxinim 
Cobra, lagarto, cutia
Água iscorreno nu chão
Lua di noite i sol di dia

(Catirina e Mateus, dançando agarradinhos)

Vento assopra, mata dança
Passarim tem meludia

Água iscorreno nu chão
Lua di noite i sol di dia

(Catirina lembra que está com raiva de Mateus. Para subitamente e o empurra para o lado, metendo-lhe um tapa nas costas)

Catirina:  

Sai pra lá, bicho inxirido
Seu pôço di falsidade

(Autoritária, empurrando-o para frente)

Anda, passa, vam’imbora 
Quero ôví toda a verdade

(Mateus só resmunga, submisso. Saem e voltam correndo ao som dos tiros disparados por Pafúncio Pedregôso. Atravessam a cena e saem gritando, em disparada, pelo outro lado) 


CENA 1
CRIMES DE PAFÚNCIO PEDREGÔSO 

(Sítio Fundão. Pássaros cantando alegremente, pousados em árvores frondosas, verdes e floridas. Pequenos animais se alimentando no solo. Pafúncio Pedregôso, ambicioso e malvado, é um rico dono de terras e empresário da região. Ele invade o Sítio Fundão com o objetivo de tomá-lo dos moradores e lá construir um moderno conjunto habitacional e uma grande fábrica. Ele entra bufando de raiva por não ter conseguido comprar o sítio. Jura vingança. Está acompanhado de seu fiel capanga Cafuçú, um pobre que ele tem praticamente como um escravo, mas de confiança)

Pafúncio Pedregôso:

(Furioso)

Este sítio vai sê meu
Quem vai mi contrariá?
Aqueles pobe coitado
Qui mora neste lugá
Num quisero mi vendê
Cum istóra di protegê
Fauna i flora preservá...

(Quando se depara com um pássaro pousado num galho de árvore, abate-o com um tiro certeiro)

Aí u qui dô pus bicho...
É bala bem acertada 

(Cafuçú vibra pulando, vai conferir se a vítima está morta e parabeniza o patrão com um gesto. Pafúncio Pedregôso faz sinal de silêncio ao capanga e se aproxima lentamente de uma cutia que está no canto e lhe dá uma pancada com o cabo da espingarda, tão forte que o bicho cai fora de cena. Depois fala zombando, com prazer doentio)

Coitadinha da cutia
Ficô toda isbagaçada...

(Riem. Cafuçú aponta para um bicho fora de cena. Pafúncio mira, dispara, o capanga corre até o lugar e volta com um veado morto, pendurado ao ombro. Posa com ar de satisfação e Pafúncio Pedregôso vai conferir. Satisfeito, pega o bicho e o joga no chão)

Cafuçú:

(Com orgulho, adulando afetadamente)

U patrãozim é certêro
É campião, é u premêro
Dêche eu dá uma atirada? 

(Aponta a espingarda para todos os lados. Pafúncio Pedregôso se abaixa e o repreende com firmeza)

Pafúncio Pedregôso:

Tem coidado, Cafuçú 
Tu tem miolo di angú?
Qué levá uma porrada? 

(Dá-lhe um tabefe)

Cafuçú:

(Como cão ensinado, submisso, rosnando fino)

Mi adiscupe, seu Pafúnço
Eu sô mermo é disastrado
Mereço apanhá bem muito
Inté caí iscornado...

(Posta-se de joelhos aos pés do patrão)

Pafúncio Pedregôso:

(Bruto, empurrando Cafuçú com a espingarda)

Sai du mêi, seu imprestáve
Troço burro, miseráve
Seu cachorro abirobado

(Olhando em volta. Tempo. Planeja, apontando para os lados)

Nu lugá daquelas árvre
Vai sê um lotiamento
Pra casa i mansão di lucho
Um grande impreendimento

(Muda a direção)

Aculá daquele lado
A indústra di chinela
Bem da berinha du rí
Inté dispois da cancela

Cafuçú:

(Sem jeito, temeroso)

Eu num quero intrapaiá
U patrão nessas altura
Máis ur dono dessas terra
Já passaro a iscritura?

Pafúncio Pedregôso:

(Impaciente)

Tu é burrim qui fáiz gôsto
Bota u côco pra pensá...

(Professoral) 

Consigo tudo qu’eu quero
Sô a lei desse lugá

(Com orgulho)

Minha riqueza é pudê
Pur isso abasta eu querê

(Ameaçador, para Cafuçú)

Tá quereno duvidá?

Cafuçú:

(Subalterno)

Eu tô nada, ave maria...
Foi só pensamento à toa 

Pafúncio Pedregôso:

(Cheio de maldade)

Si prepare pra vingança:
Tudo qui anda ô avoa
Vai morrê di tiro i fogo

(Gargalha insano) 

Essa idéa é muito boa!

(Cafuçú o acompanha na risada)

Aqui num terá máis água:
Todo u verde vai morrê
A fonte da Batatêra
Vô disviá i vendê

(Ri exageradamente. Cafuçú bate palmas vibrando)

Intonce, quem iscapá
Di sêde vai si lascá 
Num vai tê u qui bebê
(Riem desabridamente)

Cafuçú:

(Entusiasmado, deduzindo)

I dessa manêra assim
Tudo sêco i sapecado
A briga toda si incerra
Aí vão vendê as terra
Pelo prêço qui fô dado

(Cantando e dançando agarrado à espingarda. Pafúncio observa sorridente, preparando sua arma)

Num há dibacho du céu
Quem possa detê Pafúnço
Tô na vida qui mereço
Ai, patrão, eu li agradeço
Pur tê mi feito jagunço

I nóis samo muito é mau
Todo inimigo é vencido
Tô na vida qui mereço
Ai, patrão, eu li agradeço
Pur tê mi feito bandido

Pafúncio Pedregôso:

(Cantando e dançando, sob as palmas ritmadas de Cafuçú)

Eu nasci di sete mêis
Bibi ôvo di serpente 
Para mim num tem vacina
Conquistá é minha sina
Mato bicho i mato gente

Vô butá fogo nu sítio
Cumigo num tem perdão
Mi’a vingança num si cala
Agora vai chuvê bala
Eu quero é distruição!

(Neste momento, o céu se apaga e raios de fogo cortam a escuridão, num lance de luz estroboscópica. Tiros, árvores em chama e caindo, gemidos de bichos, pássaros em canto de agonia, gritos de gente. Pafúncio Pedregôso e Cafuçú rodopiam gritando como loucos, atirando e gargalhando. Escuro. Silêncio. Um último e mirrado canto de pássaro em desespero. Silêncio. Gargalhadas dos algozes)  


ENTREMEIO N.º 1
 A DESCULPA DO MATEUS

(Penumbra. Catirina e Mateus começam a troca de cena. Sítio devastado: todas as árvores serão substituídas por outras, desta feita queimadas. Cadáveres de bichos e pássaros espalhados pelo chão)

Catirina:

(Amarga, ainda com raiva de Mateus)

Ô trabái véi injuado
Inda máir na iscuridão...
Qualqué dia eu vô mimbora
Tá já chegano mi’a hora
Di caí nesse mundão

(Tempo)

Nem adianta essa eguáge 
A pratéa tá toda veno...

(Para o local onde está o operador de luz)

Ei, vocêis aí da técna
Bote máis lúiz nesse trósso
Pôis desse jeito eu num pósso
Garantí u qui tô fazeno

(A técnica aumenta a luz. Ela desdenha) 

Infuca du deretô

(Com exagero)

Ai, meu Deus, ai qui calô
Eu tô quase derreteno

(Mateus aproveita a deixa, larga o serviço e vai lhe abanar com um galho de folhas secas, fazendo dengo na tentativa de reconciliação)

Mateus:

(Insinuante)

Nu qui dependê di mim
Para tu num falta vento
Istrêla da minha vida
A maió du firmamento

(Suplicante e romântico, canta)

Eu tô pirdido nu mundo
É grande u meu sufrimento
Tu é u á qu’eu rispiro
Du meus ói é meu coliro 
Na tua lúiz eu mi oriento

(Por um instante Catirina cede. Quando ele vai beijá-la, ela muda de idéia e o empurra)

Catirina:

(Difícil. De volta ao trabalho)

Num venha cum liberdade
Li tirei da minha vida
Confiei nu teu amô
I pur isso fui traída

Mateus:

(Continuando o serviço. Inocente, insistindo)

Eu juro qui num fiz nada
Mi diga u qui foi qu’eu fiz...

Catirina:

(Desaforada)

Num si faça di inucente
Seu peçonhento infiliz

(Chorando)

Li viro máis u’a maguela
Lá na bêra du barrêro
Ai, meu Deus, comé qu’eu pude
Confiá nesse quenguêro

(Bate nele)

Mateus:

(Minimizando. Sorrindo)

Ôxe, intonce foi pur isso?
Acabe cum a ciumêra
Era a prima Veneranda
Qui vêi lá das Altanêra...

(Ouvem-se pancadas de madeira no palco, como a apressar os trocadores de cena. Eles concluem o trabalho)

Catirina:

(Reconhecendo o atraso)

Eita, qui tu só mi atrasa
Acaba mi’a paciênça
Vô tumá um bãe di sal 

(Empurrando-o)

Eu já mi vô, cum licença

(Sai, sendo seguida por Mateus, que ainda tenta se explicar)

Mateus:

(Insistindo. Sai atrás dela)

Acridite, Catirina...
Eu vô prová mi’a inucênça

(Escuro)

CENA 2
 A FEITICEIRA CATREVAGE

(Sítio devastado. Luz sobe clareando a cena sombria da destruição. Um som funéreo enche o ar. A Feiticeira Catrevage surge em grande estilo. Bela, falsa, sedutora e fria, ela é uma deusa do mal que serve aos interesses do Bode-Preto, seu senhor supremo. É enviada por este ao Sítio Fundão por desejar se apossar da área e transformá-la numa colônia do inferno, sua casa na Terra) 

Feiticeira Catrevage:

(Elegante, observando)

Sinto chêro di maldade...

(Olha mais detidamente as árvores e os bichos mortos) 

U lugá é interessante

(Pega a ossada de um animal)

Que coisinha bonitinha
Vô butá na minha istante...

(Pendura-a em seu cinto. Usa a caveira cristalina de seu colar e se comunica com o Bode-Preto, como se esta fosse um receptor e transmissor de imagem)

Falarei cum meu sinhô
Supremo das profundêza

(Mexe no amuleto. Ritualística)

Ó rei das eterna sombra
Criadô das malvadêza...

(Ouve-se um grunhido forte seguido de um estrondo e um falhar de luz)

Istô nu lugá perfeito!

(Misteriosa)

Aqui é qui é ideal
Pra butá sua filial
Num vejo nenhum defeito

(Novo grunhido. Prolongado. Entende-se como sendo de aceitação. Ela responde com naturalidade, conversando)

Eu concordo plenamente
Nesta terra tem simente
Paro mal brotá nu jeito

(Tiros vindo de fora. A Feiticeira Catrevage solta o amuleto pendurado ao pescoço. Pafúncio Pedregôso e Cafuçú entram vitoriosos, gargalhando. Quando se deparam com a Feiticeira Catrevage têm um súbito estranhamento. Cafuçú fica enfeitiçado com a beleza da feiticeira, boquiaberto, paralisado)

Pafúncio Pedregôso:

(Espantado e curioso)

Si perdeu pur estas banda?
Eu num cunheço a sinhora...

Feiticeira Catrevage:

(Anda em direção a Cafuçú e empurra carinhosamente seu queixo, fechando-lhe a boca. Pafúncio Pedregôso a acompanha com o olhar, desconfiado. Estala os dedos e ele volta ao normal. Fala com desenvoltura, educada e sombriamente)

Foi pr’aqui mermo qu’eu vim
I daqui num vô mimbora

Pafúncio Pedregôso:

(Impaciente)

Si você fô ativista
Dessa tal di ecolugia
Vá logo dano nu pé

(Mostrando a arma, ameaçador) 

Purque aqui u sibito pia
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
Feiticeira Catrevage:

(Fria e calmamente)

Eu num sô essa pessoa
Só desejo cunvessá
Cum quem foi distruidô
Da vida nesse lugá

(Pafúncio Pedregôso fica intrigado. A Feiticeira Catrevage intensifica a dramaticidade de suas falas e gestos, pois já tem certeza de que ele é o destruidor da natureza. Quer se entrosar)

Adorei u á impuro
Esse chêro di munturo 
Fáiz meu peito palpitá...

(Olha de relance para Cafuçú, paquerando. Percebeu que ele poderá ter grande utilidade em seus propósitos)

Cafuçú:

(Para ela, meio bobo de paixão) 

Eu tombém tô palpitado
U meu peito tá vechado
Tá quase pra si istorá... 

Pafúncio Pedregôso:

(Ríspido, para Cafuçú)

Sai du mêi, cara di égua
Num interrompa a mocinha

(Para a Feiticeira Catrevage, com cortesia, apresentando-se)

Sô Pafunço Pedregôso
I este caos é obra minha

Feiticeira Catrevage:

(Doce e exibida)

U meu nome é Catrevage
Foi butado im omenage
À mi’a saudosa madinha

(Choro falso)

Mamãe tava pra morrê
Papai já tinha murrido

(Aumenta o choro. Os dois se compadecem)

I eu sozinha nu mundo
Sem meu paizinho quirido
Sem u colo di mãinha
Qui di fome havia partido

(Continua chorando dramaticamente. Pafúncio e Cafuçú conversam algo inaudível. Ela para e observa querendo escutar. Tempo. Eles se voltam para ela, que rapidamente retorna ao choro inconsolável. A ação se repete)

Cafuçú:

(Penalizado e também chorando)

Ô qui vida di tristeza...

(Assuando o nariz. Para Pafúncio Pedregôso)

Chefe, tenha compachão
Vamo ajudá Catrevage
Ela tá cum pricisão

(A Feiticeira Catrevage se anima disfarçada e contidamente) 

Pafúncio Pedregôso:

(Bonachão)

Du qui tu tá pricisano?
Nosso trabái atual
É mêi fora du normal
É izecução di plano...

Feiticeira Catrevage:

(Na brecha, se oferece com ar inocente)

Eu posso sê secretára
Uma fiel assessora

(Insinuante e maligna)

I depois, da natureza
Tombém sô distruidora

Cafuçú:

(Abestalhado)

Cumé qui pode inzistí
Muié cum tanto talento?!

Pafúncio Pedregôso:

(Resoluto. Animado. Para a Feiticeira Catrevage)

Apôis li faço a oferta
Para trabaiá cumigo
Nóiz temo muita tarefa
Contra nossos inimigo...

(A Feiticeira Catrevage se mostra satisfeita e os cumprimenta. Ela se aproximou de Pafúncio Pedregôso fingindo querer lhe ajudar em seus propósitos para atiçar mais ainda sua ambição e seu ódio pela fauna e flora. Porém, sua verdadeira intenção é tomar o controle do Sítio Fundão e entregá-lo ao Bode-Preto)


CENA 3
DONZELA FLOR

(Sítio devastado. No momento em que Pafúncio Pedregôso está comemorando a nova aquisição para seu grupo criminoso, chegam Dona Colombina, grávida e com as dores últimas e intensas do parto, e sua empregada Vicença, que é moça-velha e meio lerda. Todos se voltam para ela, inclusive a Feiticeira Catrevage, que a ajuda fazendo as vezes de parteira. Com isso, ganha a confiança da mulher do “patrão”) 
Vicença:

(De fora, em desespero)

Seu Pafúnço, Cafuçú!
Adonde vocêis istá?

(Entram as duas, quase se arrastando)

Dona Colombina:

(Arfando)

Ai, Pafúnço, meu Pafúnço!
Meu bucho vai derramá...

(Pafúncio Pedregôso, Cafuçú e a Feiticeira Catrevage vão acudir a parturiente)

Feiticeira Catrevage:

(Altiva. Com jeito)

São di perto, vocêis homi

(Eles obedecem)

Já trabaiêi di partêra
Fique calma mi’a sinhora...

(Fazendo uma trouxinha de pano com o cachecol de Dona Colombina e o colocando em sua boca)

Vai mordê co’a fôça intêra

(Posiciona Dona Colombina de pernas abertas para o fundo de cena. Ela sente dor, a respiração é difícil. Vicença fica enciumada com o caqueado da Feiticeira Catrevage)

Vicença:

(Olhando-a de cima a baixo)

Ô qui coisa máis ridícla...

(Para Cafuçú)

Di onde foi qui’ela saiu?

Cafuçú:

(Disfarçando, elogioso)

Seu Pafúnço contratô
Ela é um anjo qui surgiu

(A Feiticeira Catrevage faz cara de inocência e bondade)

Dona Colombina:

(Sem forças, para a Feiticeira Catrevage)

Ô qui alma caridosa...
Nóis num fomo apresentada

Feiticeira Catrevage:

(Cortando)

Trabáio cum Seu Pafúnço
Nestante fui contratada
U meu nome é Catrevage
Muito prazê... Incantada

(Faz com que Dona Colombina morda o pano. Ela geme fazendo força. A Feiticeira Catrevage está de frente para a platéia, realizando o parto. Dona Colombina, de pernas abertas em direção ao fundo da cena. Vicença vai ajudar mesmo a contragosto. Pafúncio e Cafuçú estão na esquerda e direita baixas, respectivamente. Apreensivos. Som de águas. Tempo do parto. Nasce Donzela Flor, uma criança linda)

É minina, é minina!
Tem saúde i bunitêza...

(A Feiticeira Catrevage entrega o bebê à mãe e vai para um canto, pensativa, tramando. Cafuçú a observa com admiração. Pafúncio Pedregôso se aproxima, pega a menina e a ergue alto com ar de felicidade) 

Pafúncio Pedregôso:

(Feliz)

A mi’a fía vêi pru mundo
Eu jamais vô tê tristêza!

(O bebê chora e cessa bruscamente. Um forte assobio da Caipora ecoa. Todos se assustam. A Caipora é a deusa da floresta encarregada de proteger os bichos. Chicotadas são ouvidas, seguidas de uma gargalhada assustadora e de assobios cada vez mais vigorosos e intensos. Uma fortíssima trovoada soa e todos ficam paralisados, menos a Feiticeira Catrevage, por ser uma criatura do mundo fantástico. Ela vai se esconder atrás de um toco de árvore queimado. A luz do mundo se apaga e se acende repetidas vezes, até ficar amarelada, quando surge a Caipora montada no seu porco-do-mato, sob um fumaceiro de névoa e retumbante trovoada. Arrodeia o casal com o bebê, para majestosamente, solta três baforadas de seu cachimbo e profere sua sentença mágica)

Caipora:

(Com firmeza e pausadamente, referindo-se a Pafúncio Pedregôso)

A maldade chegô cum Pedregôso
Nossa páiz im tragédia si virô
Pur aqui u regime é di terrô
Nunca vi tanto crime caprichôso
Pariceno co’as arte du tinhôso

(Revoltada)

Bicho morto di tiro, baliado
Ôtos junto co’as planta istão queimado 
Tu secô nosso rí i a sede mata
I eu num posso dechá di sê sensata 
Pois aqui é u lugá du meu reinado 

(Postura superior e sábia de uma deusa)

A natureza sofre i si apavora
Meu devê vô cumprí sem máis demora
Punirei u bandido qui’é cupado

(Soa uma forte trovoada. Ela canta. Postura de juíza)

Usarei meus pudê i num sigundo 
Quando tu si acordá du meu incanto
Saberá u qui’é dô i u amargo pranto:
Tua cria vai tê sono profundo
Durmirá sem sintí ô vê u mundo 
Todo tempo inté dezoito ano
Adispôis morrerá, tudo acabano...
A num sê qui um guerrêro di alma pura
Si aventure nu mato i traga a cura
Qui’é um bêjo di amô... Eu num mi ingano 

(Enfática, falando)

Quem domina u segrêdo da magia
É a esfinge real di Seu Jefrésso
Qui detém u enigma du univésso 
Decifrá-lo é a única garantia

(Solta uma forte gargalhada e desaparece em meio à fumaça, trovoada e assobios. Todos “descongelam” e ainda escutam o eco das palavras da Caipora proferindo a sentença. É grande a aflição. A Feiticeira Catrevage observa pensativa. Cafuçú está apavorado. Vicença reza, num canto)

Caipora (eco):

(Áudio)

“Usarei meus pudê i num sigundo 
Quando tu si acordá du meu incanto
Saberá u qui’é dô i u amargo pranto:
Tua cria vai tê sono profundo
Durmirá sem sintí ô vê u mundo 
Todo tempo inté dezoito ano
Adispôis morrerá, tudo acabano...
A num sê qui um guerrêro di alma pura
Si aventure nu mato i traga a cura
Qui’é um bêjo di amô... Eu num mi ingano 

(Enfática)

Quem domina u segrêdo da magia
É a esfinge real di Seu Jefrésso
Qui detém u enigma du univésso 
Decifrá-lo é a única garantia”

Pafúncio Pedregôso:

(Irado)

Vô rivirá cada palmo
Desta terra iscomungada
Seja quem fô qui fêiz isso
Tá co’a morte decretada 

Dona Colombina:

(Chorando penosamente abraçada à filha inerte)

Acorde, flô da mi’a vida!
Di nada tu é cupada...

Vicença:

(Acompanhando o choro, soluçando tristemente)

Ai, meu Deus, qui dô, meu Deus!
Ela tá disacordada...

Cafuçú:

(Apavorado)

É vingança da Caipora
Foi ela qui assubiô!

Feiticeira Catrevage:

(Para Pafúncio Pedregôso, convincentemente)

Cafuçú tá co’a verdade
Ví quando u tempo parô
I ela amuntada num pôico
A sentença anunciô  

(Afasta-se, pensativa)

Dona Colombina:

(Com angústia e dor)

Como dói meu coração
Nossa filha tá sofreno
I eu sei qual a razão

(Para Pafúncio Pedregôso)

Tua ganânça pu riqueza
Distruiu a natureza
I nus trôssi a maldição

Vicença:

(Concordando)

É mermo, mi’a patroinha
Nóis tamo na perdição...

Dona Colombina:

(Canta chorando, com o bebê junto a seu peito)

Pedaço qui vêi di mim
Meu tisôro venerado
Abra u olho i solte u chôro
Beba u leite abençuado
Minininha, minininha
Já bordei tuas roupinha
Teus cuêro tão pintado

(Aumenta o tom lamentoso e de desespero)

Ó, Deus, qui gunverna u mundo
Mi leve nu lugá dela
Derrama misericórdia
Dai a lúiz à mi’a donzela
Esse farelim di gente
Tão pura, tão inucente
É da terra a flô máis bela

(Cai em prantos)

Pafúncio Pedregôso:

(Revoltado, fora de si. Armas em punho)

Eu tô cum sêde di sangue
Vô a fera procurá

Cafuçú:

(Ainda com medo. Interrompendo-o)

Si acalme, sinhô Pafúnço
Num si isqueça di alembrá
Qui a Caipora é puderosa
I ninguém consegue achá

(Ficam os quatro a conversar algo inaudível e “congelam”)

Feiticeira Catrevage:

(Num canto, precavendo-se para não ser ouvida pelos demais)

A situação tá boa
Vô dela mi apruveitá

(Maligna) 

Tô veno qui’essa criança
Representa a isperança
Du amô si restaurá

Ela pricisa morrê
Só assim posso trazê
U inferno pr’esse lugá   

(Repetindo o ritual, usa novamente o amuleto para se comunicar com o Bode-Preto)

Ó rei das eterna sombra
Criadô das malvadêza...

Faça us ano si passá
Numa grande ligerêza

(Raios e um forte redemoinho provocam a mudança de tempo. Ouve-se também o grunhido do Bode-Preto. Todos giram como que dentro de um túnel do tempo. Escuro brusco) 


ENTREMEIO N.º 2
A RECONCILIAÇÃO DA CATIRINA COM O MATEUS

(Penumbra. Entram o Mateus e a Catirina. Ele tentando se explicar. Ela nervosíssima) 

Mateus:

(Cheio de razão)

Viu como eu disse a verdade?
Veneranda vêi pra fêra
Vendê umas buginganga 
Qui trôssi das Altanêra

Catirina:

(Explosiva)

Num fale nu nome dela
Qui’eu fico logo neivosa
Só li dêi u meu perdão
Pur qui acriditei im Rosa

(Repentinamente doce e sensual)

I tombém pur qui u amô
Dêcha a gente generosa

Mateus:

(Safado, como a sentir calafrios no corpo inteiro)

Ai, mi deu u’a trimilica
Vem, mi’a nêga, mi bêjá

Catirina:

(Fazendo beicinho de mulher difícil)

Eu sô moça i sô dereita
Num quêra si apruveitá

(Segundas intenções)

Essas coisa i ôtas coisa
Só dispôis qui nóis casá

Mateus:

(Resolvido)

Apôis vamo pu cartóro
Di lá nóis procura u pade

(Avexado) 
Anuncie a próxma cena
Eu di mim já tô cum pena
Si avéche, pur caridade... 

Catirina:

(Sem alvoroço)

Vamo é cantá ôta músga
Nu’é fala falada não

(Para os músicos, que estão fora de cena)

Caprich’aí nu zabumba
É nu ritmo di baião

(Os dois dançam e cantam)

Das venta du Bode-Preto
Um grande redemoinho
Assoprô pelo caminho
Fêiz u tempo adiantá

Nas conta di Catrevage
Muitos ano si passô
I a jove Donzela Flô
Vai dezoito completá

Na sentença da Caipora
Tá chegano u dia da morte
É triste a falta di sorte
Fáiz u mal batê i ficá

(Dançam bem agarradinhos. Escuro)


CENA 4
 O ANÚNCIO DO PRÊMIO

(Sítio devastado. Passaram-se dezessete anos, onze meses e três semanas. Na mesma marca da cena anterior, “congelados” nas mesmas posições de antes do redemoinho, mas sem Donzela Flor, estão Pafúncio Pedregôso, Dona Colombina, Vicença, Cafuçú e a Feiticeira Catrevage. Com exceção desta última, todos estão com os cabelos grisalhos)

Feiticeira Catrevage:

(“Descongela” e fala maquiavelicamente, observando o grupo) 

Eu sô muito competente
Nus ofício da maldade
Logo, logo aqui vai sê
A terra da crueldade

(Sorri contidamente)

Priciso mantê a calma
Dominá todas as alma
Provocá infilicidade

(Gargalha. Todos despertam. Ela disfarça com falsa preocupação)

Eu ando tão preocupada
Nem consigo máis durmí
Só pensano na donzela
Num jeito di acordá ela

(Dramática)

Ela num vai risistí...

(Dona Colombina cai no choro, acompanhada por Vicença. A Feiticeira Catrevage também, só que com falsidade. Pafúncio Pedregôso, com ar de preocupação e revolta. Cafuçú se aproxima da feiticeira, comovido. Vicença, com olhar atravessado, enciumado) 

Cafuçú:

(Acalentando-a)

Ô, qui alma máis bondosa
Ô, qui grande coração...

(Ela faz falsa cara e boca de sofrimento)

Vicença:

(Beliscando Cafuçú, reservadamente)

Ô qui coisa máis melosa
Ô qui grande safadão...

(Cafuçú fica sem jeito)

Pafúncio Pedregôso:

(Tom de desespero)

Tá faltano uma semana
I nada di solução

Dona Colombina:

(Sofrendo. Com aperto no peito)

Eu tombém quero morrê
Num quero vivê máis não

Vicença:

(Com exagerado sofrimento)

A vida sem a flozinha
É pisa di cansanção... 

Feiticeira Catrevage:

(Com falso apoio, incentivando o sentimento de inevitabilidade)

Fôça, Dona Colombina
Cada cá tem sua sina
Só resta a conformação

Já foi tentado di tudo:
Pade, médco, rezadêra
Curandêro i macumbêra 
Ninguém vence a maldição

(Dona Colombina chora no ombro da Feiticeira Catrevage. Vicença se enfia no meio e “toma” a patroa, dando-lhe o ombro)

Cafuçú:

(Para a Feiticeira Catrevage, num rompante)

Tu mi deu u’a lúiz agora
Mi alembrêi qui a Caipora
Insinô a salvação

Feiticeira Catrevage:

(Para si)

Ai, meu Cão, falêi dimáis
Priciso tê máis coidado
Já qui inté esse abestado
Di pensá ficô capáis 

(Para os demais, tentando mudar o rumo da conversa)

Num creio qui seja certo
Acriditá na bandida
Ela só quis inganá
Cum nossa dô vai brincá
Essa causa tá pirdida...

(Choro falso. Dona Colombina volta a chorar, novamente acompanhada pela fiel Vicença)

Cafuçú:

(Convicto)

Vocêis num ouviro u eco?
A vóiz dela im repeteco?
É a passage pra vida!

(Repetindo as palavras da Caipora no mesmo tom misterioso em que ouvira)

“Tua cria vai tê sono profundo
Durmirá sem sintí ô vê u mundo 
Todo tempo inté dezoito ano
Adispôis morrerá, tudo acabano...
A num sê qui um guerrêro di alma pura
Si aventure nu mato i traga a cura
Qui’é um bêjo di amô... Eu num mi ingano”

Dona Colombina:

(Num ataque de esperança)

Ai, Pafúnço, meu quirido
I si isso fô verdade?

Feiticeira Catrevage:

(Botando gosto ruim)

Num inxiste tal guerrêro
Nem aqui nem na cidade
Inda máis di alma pura
Num seja cabeça dura
Aceite a realidade

Vicença:

(Perdendo a paciência)

Eita, qui peste agorenta
Ô muiezinha infarenta
Si cale, pur caridade!

(A Feiticeira Catrevage lança-lhe um olhar fulminante e ela lhe retribui no mesmo instante)

Dona Colombina:

(Bondosa)

Tenha máis calma, Vicença
Ela só quis confortá

(Catrevage dá uma rabissaca para Vicença)

Cafuçú:

(Insistindo)

Num pudemo disistí 
Num devemo si intregá...  
Vão pur mim qu’eu num tô lôco
Mi oiçam só máis um pôco
Nóis pricisamo tentá 

(A Feiticeira Catrevage está impaciente com o andamento da conversa. Cafuçú continua sua exposição com ânimo, ainda imitando a voz e o tom da Caipora)

“Quem domina u segrêdo da magia
É a isfinge real di Seu Jefrésso
Qui detém u enigma du univésso 
Decifrá-lo é a única garantia”

Feiticeira Catrevage:

(Sem se conter)

Tu indoidô, Cafuçú?
Esse Jefrésso é invenção

Pafúncio Pedregôso:

(Gritando)

Si calaí todo mundo
Num quero zuada não!
Colombina é quem resolve

(Para Dona Colombina, amável)

Consulte seu coração...

(Dona Colombina o fita nos olhos, olha para os céus, depois acena penosa e afirmativamente com a cabeça. Ela entende ser este o último gesto possível para salvar sua filha da morte. A Feiticeira Catrevage tenta disfarçar seu descontentamento)

Aceito qualqué tratado
Quero incontrá um guerrêro
Valente i di alma pura

(Para Cafuçú, ordenando)

Procure nu mundo intêro!

(Vicença comemora, como se tivesse derrotado a Feiticeira Catrevage)

Cafuçú:

(Vibrando)

Fêiz muito bem, meu patrão
Nosso tempo tá acabano
U jeito di consiguí
É u’a carta divugano

Pafúncio Pedregôso:

(Satisfeito)

Bem pensado, meu rapaz
Tu é sabido um bucado
Tome canêta i papel 

(Tira do bolso e entrega uma caderneta pequena e uma caneta a Cafuçú)

Anote bem anotado
Vô ditá im pôcas linha
U qui vai sê divugado:

(Pensa e dita pausadamente)

Saiba todos us valente
Qui minha Donzela Flô
Tá incantada i sua cura
É um bêjo di amô...

(Um fundo musical preenche a mímica que ambos realizam na feitura da carta. Um fala, o outro escreve. A Feiticeira Catrevage tem disfarçada reação de desagrado e Dona Colombina de acentuada aprovação. Vicença se mete entre as duas e observa Cafuçú suspirosamente. Depois, Pafúncio Pedregôso conclui)

Bote u ponto qu’eu assino
Istá selado u distino
Da sorte quero um favô...

(Assina a carta. Cafuçú sai em disparada para providenciar a urgente divulgação da mensagem)

Vicença:

(Zelosa)

Isperaí, Cafuçú
Isbarraí na partida
Vô prepará rapidim
Momita chêa di cumida 

(Canta, suspirosamente)

Meu amado mensagêro
Pricisa ficá bem forte 
Ai, qui home corajoso
Vai partí pu Sú i pu Norte

Ares, mares i diserto
Bem longe deste sertão
É pur onde vai corrê
Levano meu coração

(Suspira revirando os olhos e sai correndo atrás dele. A Feiticeira Catrevage fica desolada. Dona Colombina e Pafúncio Pedregôso, esperançosos. Escuro)


ENTREMEIO N.º 3
 O NOTICIÁRIO RODA O MUNDO

(Catirina e Mateus entram. Ele com um radinho de pilha no ouvido, sem lhe dar confiança)

Catirina:

(Varrendo a cena, de mau humor)

Eita, sirvicim sem graça
Vão pensá qu’eu indoidêi 
Varreno sem nem tê licho
Ô idéa qu’eu odiêi

Só faço purque priciso
Di ganhá u meu saláro

(Mateus interrompe na maior cara de pau)

Mateus:

(Fazendo sinal de silêncio)

Num dá pra varrê calada?
Assim num iscuto nada
Agora é u nuticiáro

Catirina:

(Enfezada)

Mar num tô dizeno mermo
Tá pensano u quê, otáro?

Mateus:

(Sem ligar para o que ela disse, tira o rádio do ouvido e fala)

É u jornal du mêi du dia
Vai tê nutiça importante
Anunciô na manchete
Isper’aí um instante

(Aumenta o volume do rádio. Ouve-se a característica do programa e, em seguida, a voz do locutor. Ela dá de ombros e volta a varrer)

Voz:

(Chamando a atenção dos ouvintes)

Seu Pafúnço Pedregôso
Influente fazendêro
Qui tem a maió riquêza
Divuga pru mundo intêro
Uma carta tentadora
Esta eu vô lê premêro:

(Catirina se interessa e para o serviço) 

“Saiba todos us valente
Qui minha Donzela Flô
Tá incantada i sua cura
É um bêjo di amô

Máis só pode li bêjá
Aquele qui decifrá
U enigma du univésso

Tem qui sê homi sem mêdo
Quem domina esse segrêdo
É a isfinge di Seu Jefrésso

Todo guerrêro é bem vindo
Num importano a nação
U prêmio pu vencedô
É di dóla um milhão

Si casará co’a donzela
Tudo u qui’é meu erdará
Furtuna isbanjará  
Adispôis qui salvá ela”

(Mateus desliga o rádio)

Mateus:

(Com afoiteza) 

Vô disputá esse prêmio
Tenho sorte i sô valente...

Catirina:

(Interrompendo-o com uma vassourada)

T’inxerga, nêgo safado
Sinão eu quebro teur dente

Mateus:

(Coçando o mondrongo da cabeça)

Ai, mi’a fía, eu tô cum pena
A donzela vai morrê...

Catirina:

U qui’é qui tu tem cum isso?
Nem adianta esse ispanto
Tá lembrado qui’u pai dela
Butô fogo im todo canto?

Mateus:

Máis a moça é inucente
Num pode sê maltratada...

Catirina:

(Perdendo a paciência, corta-o)

Num si meta nessa istóra
Eu concordo co’a Caipora
Você num sabe é di nada

(Dá outra cabada de vassoura nele)

Aqui fáiz, aqui si paga

(Empurrando-o para fora com o cabo da vassoura)

Rumbora, qu’eu tô infezada

(Saem. Escuro)


CENA 5
 OS VALENTES GUERREIROS

(Sítio devastado. Está próximo o dia em que Donzela Flor completará dezoito anos. Dá-se o anúncio do nome dos guerreiros que sairão em busca da salvação da moça. Em cena estão Pafúncio Pedregôso, Cafuçú e a Feiticeira Catrevage. Uma rabeca em solo arranhado e rouco faz a ilustração musical do momento) 

Feiticeira Catrevage:

(Abrindo um grande livro de capa vermelha, folheia-o e faz o chamamento solene de cada um dos escolhidos)

Nesta grande ocasião
Apresento dois guerrêro
Isculhido entre milhares
Vô chamá logo u premêro:

U istrangêro Troncho Sam
Qui entre i qui si apresente

(Entra Troncho Sam, agente do governo norte-americano, armado com uma enorme metralhadora, meio adocicado. Cumprimenta educadamente os presentes. Nota-se que Catrevage torce por ele) 

Ele é norte-americano
Distimido i intiligente

Troncho Sam:

(Com sotaque carregado e gestos afeminados, canta)

Eu istár muita filiz
Nesta sítio bem bacana
Meu pequena armamento
Djá matô iraquiana
Palestina, africana
Cum seus bala arrebento
U Caipora, essa sacana

(Pafúncio Pedregôso se entusiasma com a exposição de Troncho Sam e o cumprimenta efusivamente)

Pafúncio Pedregôso:

Seu Troncho é homi di fibra
Praticante da justiça
Eu aposto qui’ele fáiz 
Caipora virá carniça

(Troncho Sam e a Feiticeira Catrevage trocam olhares de cúmplice)

Feiticeira Catrevage:

(Sem o menor ânimo, chama Edimundo Virgulino, um sertanejo simples e valente, cangaceiro do bem, fervoroso defensor das causas ecológicas)

U próxmo qui vô chamá
Nordestino i brasilêro
Nem sêi purque vêi pra’qui 
Esse simples cangacêro

(Com desinteresse) 

Qui entre sem cirimônha
Edimundo Virgulino
Nascido nu Ciará

(Para si)

Ai, qui nôjo eu tô sintino...

(Entra Edimundo Virgulino, vestes de cangaceiro, armado de rifle, punhal e faca peixeira. Tem expressão de simplicidade, valentia e destemor)

Edimundo Virgulino:

(Cortês, canta)

Istô aqui dicidido
A libertá a donzela
I já tenho muitos plano
Pra quando eu casá cum ela

(Todos olham curiosos)

Aqui nu Sítio Fundão
Vô protegê a naturêza
Devoverêi a seur dono
Combateno a malvadêza

(Todos ficam embasbacados. Pafúncio Pedregôso cochicha inconformado algo com a Feiticeira Catrevage, que depois vai cochichar com Troncho Sam. Só quem devota alguma admiração por Edimundo Virgulino é Cafuçú)

As água qui disviaro
Pras terra dus puderôso
Vão voltá pru nosso rí
Qui vai sê bem caudalôso

(Todos se cutucam, incomodados. Cafuçú permanece admirando o cangaceiro)

As planta qui distruíro
Us bicho qui assassináro
Vão sê pra nóis como santo
Sem pricisá di vigáro

(É interrompido pela Feiticeira Catrevage, a mando de Pafúncio Pedregôso)

Feiticeira Catrevage:

Já tá bom di cantação
Cale a boca, pu favô

Pafúncio Pedregôso:

(Apressando-se, para fora)

Pode trazê a mi’a fía
A linda Donzela Flô!

(Ouve-se um solfejar lamentoso e triste de aboio arrastado. Entram Dona Colombina e Vicença, com Mateus e Catirina carregando Donzela Flor numa liteira feita de cipós e galhos secos, ornada de sempre-vivas coloridas. Ela veste uma roupa de princesa à moda sertaneja. É extraordinariamente bela. Cantam até acomodarem a liteira no chão e Pafúncio Pedregôso acenar para que parem)

Coro de acompanhantes:

(Aboio triste)

Tá chegano u anevessáro
Da donzela adurmicida
Na disgraça foi parida
Li caiu u’a maldição
Ela é um pôço di purêza
Num si viu maió tristêza
Di si vê tanta belêza
Da morte ficá na mão

(A liteira fica no centro, como uma manjedoura, e todos a seu redor. Cada um na sua máscara de intenção)

Dona Colombina:

(Olhando para a filha)

Eu só quero qui’ela acorde
Ai, num môrra mi’a filhinha

(Chora. Vicença, Catirina, Mateus e Cafuçú também desatam no choro, em ordem dominó, depois todos juntos com expressões e gestos distintos e complementares)

Troncho Sam:

(Demonstrando falso interesse em resolver o problema. Sensível e ridículo. Para Dona Colombina)

Num chorár, meu bom sinhora...

(Olha para Donzela Flor e se faz de apaixonado)

Vô salvá u princezinha
Eu istár apachonado
U segrêda vai sê minha

(Como um herói de araque)

Vô partí par’u batalha
Siguirêi u meu caminha!

(Olha mais uma vez a donzela, acena de modo suspeito para a Feiticeira Catrevage, cumprimenta Pafúncio Pedregôso e parte pomposamente)

Edimundo Virgulino:

(Aproxima-se de Donzela Flor e a contempla deslumbrado. Abre o embornal, tira uma rosa vermelha e a coloca presa em seus cabelos. Romântico)

Num há nu mundo máis bela

(Para Dona Colombina e Pafúncio Pedregôso)

Aqui eu faço uma jura
Di amô pela donzela:
Si eu num cumprí a missão
Di acabá co’a maldição
É purque murrí pur ela

(Como um príncipe valente)

A sorte já istá lançada
Eu num disfaço promessa
Nem recuso a caminhada 
Cuidem bem da minha amada
Já mi vô, qu’eu tenho pressa

(Sai. Cafuçú chora emocionado. Catirina se encanta, suspira e Mateus olha para ela atravessado. Catrevage faz cara de reprovação. Pafúncio mostra descaso e desinteresse. Dona Colombina sorri, acena carinhosamente e puxa o cortejo de volta. Os mesmos carregam a liteira. Cantam e, fora de cena, solfejam até sumir a voz como pelo distanciamento)

Coro de acompanhantes:

(Aboio triste, mais arrastado ainda) 

Us guerrêro tão na mata
Procurano Seu Jefrésso 
U enigma du univésso
É a chave da salvação
Quêra Deus qui a valintia
Sustente a sabiduria
I a bela tenha aligria
Di acordá da maldição

(Saem. Voltam Pafúncio Pedregôso e a Feiticeira Catrevage, cuidando para não serem seguidos)

Pafúncio Pedregôso:

(Segredando, cara e voz de mau)

Pricisamo planejá:
Adispôis qui u vencedô
Bêjá mi’a Donzela Flô
Fazeno ela si acordá
Eu quero esse valentão
A sete palmo du chão
É u prêmio qui vai ganhá

(Ri baixo e insanamente) 

Feiticeira Catrevage:

(Alegre e demonstrando maldade)

Apôis dêche isso cumigo
Antes mermo du noivado
Durante a recepição
Ele morre invenenado

(Riem macabramente) 

Pafúncio Pedregôso:

(Com satisfação)

Tudo voltano ao normal
Realizo meu projeto...

(Aperta a mão da Feiticeira Catrevage e sai rapidamente)

Feiticeira Catrevage:

(Com ironia)

Vai pensano, seu Pafúnço...

(Arremeda-o, imitando seu jeito e sua voz) 

“Realizo meu projeto”

(Fria e calculista)

Meu plano é máis iscabrôso:
Ai, é mermo qu’eu tá veno
Tudim tumano veneno
Eu acho máis vantajôso

(Ri e canta macabramente)

Meu supremo Bode-Preto
Gosta di devastação
Vô fazê minha festinha
I u triste Sítio Fundão
Sombrio com’ele istá
Vai sê u milhó lugá
Para morada du Cão

(Gargalha. Subitamente a cena se apaga. Escuro)


ENTREMEIO N.º 4
 O CIÚME DO MATEUS

(Entram Mateus e Catirina novamente para a troca de cenário: agora será o Vale da Guengrena, que é um ambiente negro, onde se vê apenas caveiras brancas penduradas e fumaça cinzenta. A situação de ciúmes se inverte. Agora é ele quem está com raiva devido aos suspiros dela na cena de Edimundo Virgulino)

Mateus:

(Resmungão)

Pur qui’é qui butaro a gente?
Nóis num samo nem atô

Catirina:

(Faceira, provocando)

Eu gostêi di tê entrado
É u’a aventura di amô
U cangacêro é romântco...

(Abana-se)

Chêga meu á si acabô

Mateus:

(Raivoso)

Ochente, si dê respeito
Tu vai butá chife im mim?

Catirina:

(Rindo)

Eu tava ti aperriano

(Abraça-o)

Eu só quero meu neguim...

(A brincadeira da Catirina fez com que Mateus antipatizasse mais ainda Edimundo Virgulino)

Mateus:

(Soltando-se)

Ele vai é si lascá
Troncho Sam é máis isperto

Catirina:

(Pondo as mãos na cintura)

Vai é nada, eu tem certêza
Edimundo é u homi certo

Mateus:

(Replicando)

Cangacêro lá é homi
Divia tá nu xadrêiz

Catirina:

(Pegando ar)

Ô cabôco véi, máir besta
U qui foi qu’ele ti fêiz?

Mateus:

(Trombudo)

Isso num é da sua conta
Vamo trabaiá calado
Tu só tem papo furado
Tá feito barata tonta

Catirina:

(Atrevida, parte para a briga)

Repete si tem corage
Pra eu metê u’a mãozada
Nu bebedô di lavage...

Mateus:

(Abrindo da confusão)

Tá bom di tu si acalmá
Já terminamo u sirviço
Acab’aí u ribuliço
Pra peça continuá 

Catirina:

(Nariz empinado)

Eu já tava mi isquentano
Já ia tirá teu tutano

(Autoritária)

Vamo pra casa almunçá

(Sai na frente, Mateus atrás, resmungando. Escuro) 


CENA 6
TRONCHO SAM E O BODE-PRETO NO VALE DA GUENGRENA

(Vale da Guengrena. Ambiente sem vida. Caveiras penduradas. Sons macabros. Entram a Feiticeira Catrevage e Troncho Sam. Ele está visivelmente incomodado com o cheiro ruim do lugar)

Troncho Sam:

(Amedrontado)
Eu istár agradicida
Cum seu ajuda i amizade...

Feiticeira Catrevage:

(Cortando)

Num pricisa agradicê
Só quero sinceridade

(Enfática. Ele ouve com atenção)

Eu proponho uma aliança
Vô dizê u qui planejêi 
Num tráia mi’a confiança:
Tu casa co’a durminhoca
Conquista a velha coroca
Qui Pafúnço vai na dança

Troncho Sam:

(Desconfiado)

U qui quér u meu sinhora?
Eu luta cum lealdade

Feiticeira Catrevage:

(Maligna, poderosa)

Num si faça di sabido
Discubrí sua identidade
Tu é um agente secreto
Desses qui num tem bondade

Teu gunverno tá quereno
Conquistá esse terreno
Pra pudê logo instalá
Uma base militá

Troncho Sam:

(Sobressaltado)

Teu fala mi compromete

(Quase sussurrando)

Sêr assunta sigilosa

(Temeroso)

Tu discubriu meu missão
Meu vida tá pirigosa 

(Cúmplice)

Mi fala di tuas plana
Pr’eu sê u vitoriosa

Feiticeira Catrevage:

(Fechando questão, sensual)

Num vamo perdê máis tempo
Eu só quero inriquecê
Tu vai si apossá di tudo
I como eu vô merecê

(Romântica)

Mi dê di presente as jóia
I mi case cum você 

(Ele se assusta com a proposta, mas cede)

Troncho Sam:

(Sem saída)

Di meu parte tá aceitado
Meu isposa tu vai sê

(Apertam-se as mãos)

Pur onde nóis cumeçá?
Priciso u luta vencê...

Feiticeira Catrevage:

(Misteriosa)

Vô invocá meu sinhô
Qui mora na iscuridão
Ele vai ti aconselhá
Direitim u bê-a-bá 
Pra ganhá u Sítio Fundão

(Realiza novamente o ritual do Bode-Preto) 

Ó rei das eterna sombra
Criadô das malvadêza...

(Grunhido forte com variação de tons, como uma fala, seguido de estrondo e falhar de luz. Troncho Sam tenta correr e é seguro pela feiticeira. Ela responde)

Intendí meu soberano
Trôssi u cálice di cristal...

(Ergue a mão e um grande cálice de cristal desce até que ela possa segurá-lo. Para Troncho Sam, como uma bruxa)

Trêis gotinhas du teu sangue
Pra início du ritual...

Troncho Sam:

(Morrendo de medo)

Minha sangue é tão fraquinha
Pergunte si num pudêr
Tirár di rato ô galinha

(Ouve-se um grunhido aterrorizante do Bode-Preto como que repreendendo Troncho Sam, que fica apavorado, olhando para os lados, para cima e para baixo)

Tuda bem, tá tuda bem...

(Para a Feiticeira Catrevage, com medo, aboiolado)

Tu tirár só trêis gotinha...

(Ouve-se uma risada grunhida do Bode-Preto. Troncho Sam fecha os olhos e estende a mão para a Feiticeira Catrevage que, com uma de suas longas unhas, fura a ponta do dedo do comparsa e faz pingar três gotas no cálice de cristal. Vai para o centro da cena, ergue-o com as duas mãos acima da cabeça e continua o ritual de invocação do Bode-Preto, no idioma das trevas. Troncho Sam fica num canto, apavorado, boquiaberto. Fundo: música sinistra)
Feiticeira Catrevage:

(Como uma sacerdotisa, com voz gutural macabra, soletradamente)

Ó Bodé Preté trevá  
Á presú nó chã quedó

Ó Bodé Preté trevá  
Tú bebé camú dongó

Ó Bodé Preté trevá  
Tuó peçõn venenê    
Pá çubí cumó pudê
Té soló quenté ribá    

(Êxtase)

Ó Bodé Preté trevá!  

(Forte estrondo, repetido seguidamente três vezes. Raios e sons aterrorizantes. Aparece o Bode-Preto, com seu tridente de fogo) 

Bode-Preto:

(Canta. Sua voz é assustadora, sempre misturada a gritos e sussurros de almas em sofrimento eterno) 

Sô rei das profunda treva
Meus pudê num tem frontêra
Quem mi dé sua lealdade
Só vai tê prosperidade
Riquêza pra vida intêra

Quero as alma deste mundo 
Morano na mi’a nação
U fogo di meu tridente
Fáiz filiz qualqué vivente
Basta mi pidí benção

(Vai até o centro e a Feiticeira Catrevage lhe entrega o cálice de cristal. Ele bebe, solta o cálice e este vai subindo até se perder nas alturas. Fala, após arrotar nojentamente e limpar a bocarra com a pata) 

Amargo gôsto di fel...
Qui sangue deliciôso

(Soberano, calculista)

Pur que mi chamaro aqui?
U meu tempo é preciôso

Feiticeira Catrevage:

(Com reverência)

Salve, meu sinhô supremo
Esse caso é valorôso

(Vai cochichar algo no ouvido do Bode-Preto. Depois ele solta um grunhido forte, seguido de estranha gargalhada)

Bode-Preto:

(Arrodeando Troncho Sam. Irônico e ameaçador)

Aprecio a covardia
Ti faço meu aliado
Teu chefe na Casa Branca
A meu reino é filiado

(Troncho Sam fica mais à vontade. Já se sente amigo do Bode-Preto, que continua a fala, encarando-o)

Tu mi dá a tua alma
Im troca, ti dô a vitóra
Conquista u Sítio Fundão
I a máis eterna glóra 
Teu gunverno sempre quís
Invadí este país
É u qui tenho na memóra

Troncho Sam:

(Agradecido, com reverência desajeitada)

Eu tá muito emocionada
Minha chefe puderosa
U meu alma é todo tua
Meu demonho generosa 
Eu imagina u nutiça: 

(Como vendo o jornal)

Troncho sê vitoriosa

(Ri. O Bode-Preto grunhe aprovando)

Bode-Preto:

(Interrompendo o clima. Misterioso)

Agora iscute cum calma
Mi preste muita atenção:
Edimundo Virgulino
É puro di coração
U único desse univésso
Qui du enigma di Jefrésso
Vai tê a revelação

Seu bêjo vai tê magia
Pra acabá co’a maldição

(Notando que Troncho Sam se desanimou)

Tenha fé nu Bode-Preto
Istudêi cada jogada
Tu vai matá Virgulino
Planejêi uma cilada

Troncho Sam:

(Envalentando-se)

Eu usár metralhadora
Ele fica istraçalhada 

Bode-Preto:

(Continuando, com firmeza)

Tu vai agí dôto jeito
Vai robá u pudê du bêjo
Arrancano du seu peito
Seu coração sertanêjo

Depois, imediatamente
Mi oferte pra meu jantá
Cum déiz óvo di serpente

Troncho Sam:

(Entrando no espírito da maldade plena)

Eu gostár desse tortura
Cum isso eu fica contente!
Bode-Preto:

(Grunhe rispidamente. Troncho se aquieta. Continua, professoral)

Só si mata um cangacêro
Li surprendeno à trêição
Tu vai na vereda verde
A qui restô nu Fundão
S’isconde i fica calado
Num faça marmota não
Na moita ispera u regrésso  
Lá du oráclo di Jefrésso
Du guerrêro valentão

(Chama a Feiticeira Catrevage num canto e fala no idioma das trevas, misturado com grunhidos horripilantes. Ela com expressão compenetrada e de concordância)

Catré tó vá pá figí 
Lú passú tiró ná zá 
Tôrôrô sin má subí 
Firibê bocó sává 

(Gargalhada grunhida, de maldade. Ela o acompanha no transe macabro)

Sálivá rabú bodé
Nú córó pélú détrá
Vá pú chã úfú mórré
Mí fogó paçá bitá  

(Emite grunhido tenebroso) 

Feiticeira Catrevage:

(Depois de uma gargalhada, espilicute)

Ai, meu Cão, qui belo plano!

(Para Troncho Sam)

Vô mi transformá num pássaro
Firido para morrê
Di asa quebrada i caído
I ele vai mi socorrê

Bode-Preto:

(Completando, mostra um rabo-de-demônio)

Este rabo-di-demônho
É um instrumento cruel
Tem cuspe du Bode-Preto
Veneno di cascavel 

Intonce, nessa mau óra
Sem ele si apercebê
Tu si lança sem demóra
I li fura pra valê

(Grunhe sorrindo e entrega o rabo-de-demônio a Troncho Sam, que posa confiante com sua nova arma)

Vai faltá rispiração
Chegano di vêiz a morte
Conclui u qui ti ordenêi
I mi’a parte eu cumprirêi
U teu distino é di sorte

(Grunhido apavorante, demoníaco. A Feiticeira Catrevage gargalha estranhamente. Raios. Estrondos e gritos de sofrimento ecoam. Escuro)


ENTREMEIO N.º 5
 A APOSTA

(Quando a luz acende Catirina já está no serviço. A cena será trocada para uma área verde com uma gruta de pedra entre árvores. É a gruta do Oráculo do Sítio Fundão. Entra Mateus, apressado)

Mateus:

(Arengando)

Eu num disse, Catirina?
U cangacêro já era!
Troncho Sam já tem apoio
Da maldita Besta-Fera

(Ri com sarcasmo)

Catirina:

(Com raiva)

Ô bicho du meus abuso
Tá toceno pelo mal!?

Mateus:

(Ainda fazendo hora, referindo-se a Edimundo Virgulino)

Eu quer’é vê si ele é bom
Quando chegá nu final...

Catirina:

(Desafiando)

Apôis lanço um disafio
Quero cuntigo apostá: 
Tu si veste di muié 
Si u cangacêro ganhá

Mateus:

(Com desdém. Pegando no queixo dela) 

Ô neguinha máis bobinha

(Ri)

Eu vô entrá nu teu jogo
Sem arredá uma linha
Máis tu vai mi prometê
Qui si u gringo intão vencê
Toda orde será minha

Nunca máis vai dá im mim
Si eu bebê, num achá ruim
É essa mi’a apostinha

(Tenta abraçá-la e ela se desvencilha) 

Catirina:

(Resoluta)

Vai cada cá pa seu canto
Nóis tamo justo i acertado

(Rejeitando-o)

Eu nu’abraço adevessáro
Vamo isperá u resutado 

(Música de fundo. Catirina dá uma rabissaca, faz um ajeitado de bunda e sai. Mateus sai atrás, depois volta correndo com a Catirina no seu encalço com um pedaço de pau na mão. Ele atravessa a cena e sai pelo outro lado. Ela para, volta e sai fungando de raiva. Escuro)


CENA 7
EDIMUNDO VIRGULINO E SEU JEFRÉSSO

(Mata verde. Gruta do Oráculo do Sítio Fundão. Pássaros cantam. Tranquilidade. Vento sopra brandamente. Chega Edimundo Virgulino, curioso a espreitar. Ele é valente e decidido. Para no centro da mata)

Edimundo Virgulino:

(Cansado)

Deve sê este u lugá

(Observa)

Parece qui istô sozinho

(Esperançoso)

Vô u oráclo consutá

(Desanimado)

Num sei como procedê
Para a isfinge aparicê

(Perdido. Apreensivo)

Eu num vô mi perduá...  

(Desenganado)

Num mi interessa u dinhêro
Quero a donzela salvá
I u qui fô da naturêza  
Meu desejo é preservá...

(Encosta-se numa árvore. Ouve-se um forte, agudo e longo assobio, seguido de chicotadas. Vento balançando violentamente as folhas. Ele se assusta. Salta com arma em punho. Repentinamente a Caipora aparece ao som de uma trovoada. Música de fundo. Ele aponta a espingarda. Ela gesticula magicamente e o faz ficar paralisado, depois, com a indicação dos dedos e seu intenso olhar, força-o a mover a arma até apontar contra si. Ele se apavora, somente seu olhar se expressa. Ela emite uma gargalhada estranha)

Caipora:

(Poderosa)

Eu ti acompanho di longe
Sêi qui’é um homi decente
Num pricisa máis di arma

(Tira-lhe a espingarda e o facão. Deposita-os atrás de uma árvore. Encara-o)

Istô leno a tua mente

(Dando a volta ao redor dele)

U teu coração é puro
Meu cangacêro valente

Eu sô a deusa Caipora
Num quero u mal da sua gente... 
(Estala os dedos e ele volta a se mover)

Edimundo Virgulino:

(Com seriedade)

Eu respeito teu reinado
Istô aqui purque quero...

Caipora:

(Interrompendo-o e completando)

Salvá a donzela amada

(Constatando)

Teu sentimento é sincero

(Reveladora)

A libertação da moça
Pode sê a salvação
Da fauna i tombém da flora
Aqui du Sítio Fundão

Edimundo Virgulino:

(Mais à vontade)

Eu tenho qui decifrá 
U enigma di Seu Jefrésso
Ganhá u pudê du bêjo
Adispôis disso eu regrésso

Caipora:

(Afável)

Eu sei qual é tua missão
Pur isso vim ti ajudá
U qui posso li dizê
Tu vai agora iscutá: 

(Confidente, apontando a gruta)

Aquela gruta é u oráclo
Si ajuelhe nu pé dela
Pense forte im sua amada
Cuntigo seno casada...
Todo u segrêdo tá nela

(Trovoada forte. O tempo muda de luz, raios cortam a penumbra. A Caipora assobia estridentemente. Mais um trovão. Ela desaparece, ouvindo-se som do chicote e as gargalhadas. Silêncio. Luz volta ao normal, com música de fundo. Edimundo Virgulino está sozinho novamente. Segue a orientação da Caipora e vai se ajoelhar, com os braços erguidos, diante do oráculo. A música se enche de efeitos de suspense e mistério. A cena escurece, ficando apenas a intensa luz do oráculo, de onde sai uma densa fumaça verde)

Seu Jefrésso:

(Fora de cena. Misterioso, com voz de velho, macia, cheia, sombria e grave)

Quem istá chamano a isfinge?
Quem ousa mi dispertá?

(Aparece solenemente com música condizente com sua realeza. É uma versão sertaneja das esfinges gregas: um velho magro, semblante terno, alto, apoiado num cajado, calçando sandálias de couro, roupas e longas barbas brancas, duas asas de trançados de palmeiras verdes)

Edimundo Virgulino:

(Humilde)

Sô um simples cangacêro
Eu só vim li consutá 

(Levanta-se, mas continua em posição de reverência. Convicto. Com serenidade)

U sentido da mi’a vida
É a conquista da cura
Pru mal qui sofre uma flô
Inucente, bela i pura... 

Tombém quero a liberdade
Dus vivente da floresta
Pois aqui a crueldade
Ambição, prevessidade   
Matô muito i pôco resta

Seu Jefrésso:

(Simpático)

Percebo tua bondade
Porém num posso mudá
U rumo da umanidade

(Levanta o cajado e soam trovoadas com raios incandescentes. Sons de cantos e pisadas em ritual. Canta em tom de mistério)

Proporei u meu enigma
Morre si num decifrá
Istauta di barro i lata 
É u qui vô ti transformá

(Sonoro e firme)

Decifra ô ti condena:

(Compassado)

Di manhã tem quato pé
É criatura terrena
Mêi dia passa a tê dois
Tem fecundidade plena

Máis us pé, di tardezinha
Pode sê quato di novo
Seno dois iscundidinho
Du jeito du pinto im ovo

I di noite vai tê trêiz
U tipo di criatura
Mi diga di uma só vêiz

(Suspense. Música pontuando o esforço mental de Edimundo Virgulino. Ele sua. De repente, sua memória reproduz o conselho da Caipora)

Caipora:

(Áudio, com eco)

“Aquela gruta é u oráclo
Si ajuelhe nu pé dela
Pense forte im sua amada
Cuntigo seno casada...
Todo u segrêdo tá nela”

(Edimundo Virgulino demonstra intensa alegria e sensação de descoberta. Anda um pouco e para diante de Seu Jefrésso)
  
Edimundo Virgulino:

(Responde calma e confiantemente. Calculando com cuidado)

É a muié, Seu Jefrésso
Como bebê engatinha
Assim andano di quato
Tradução: é a manhazinha

Mêi dia: é a fase aduta
I ela anda cum dois pé
Máis tarde volta a tê quato
Quando grávda ela tivé
Máis dois pé im sua barriga
Ar mi’as conta são di fé

U qu’eu digo é verdadêro
A noite é como’a velhice
I a bengala é u pé tercêro 

(Um zunido metálico soa depois da fala do cangaceiro. Trovoadas se seguem. Seu Jefrésso ergue o cajado e o mundo silencia. Pausa. Suspense marcado por efeitos)

Seu Jefrésso:

(Com autoridade majestosa)

U enigma tá decifrado!

(Para Edimundo Virgulino)

I u pudê du bêjo é teu 
Volta i salva tua donzela
Qui’a isperança renasceu
Protege us bicho i as mata
Conforme tu prometeu 
Libera as água das fonte
É esse um pidido meu 

(Ergue o cajado e uma luz verde invade toda a cena. Trovões e raios. Luz e escuro se sucedem com efeito estrobo. Fumaça. Seu Jefrésso desaparece. A fumaça vai se dissipando e uma luz branca clareia toda a área. Um assobio parecido com o da Caipora atrai o cangaceiro para fora, para dentro da mata)

CENA 8
 A ARMADILHA DO PÁSSARO

(Mata verde. Gruta do Oráculo do Sítio Fundão. Pássaros cantam canto esquisito. Edimundo Virgulino volta para pegar seu embornal que havia deixado junto de uma pedra, quando percebe um pássaro estranho com uma asa quebrada enganchado numa árvore. Suspense. Edimundo o ajuda generosamente. Troncho Sam sai de trás de uma árvore e se aproxima lenta e traiçoeiramente. No momento certo, a ave – que é a feiticeira disfarçada – abraça o cangaceiro fechando suas asas sobre ele e o covarde oponente o fere com o rabo-de-demônio envenenado. Edimundo agoniza e morre. Troncho Sam desembainha uma faca peixeira e vai arrancar o coração do herói, quando, numa forte trovoada, surge reluzente e misteriosa, a esfinge de Seu Jefrésso)

Seu Jefrésso:

(Com veemência)

Máis u’a vêiz u Bode-Preto
Si atreveu a interferí
Na vida desses mortáis

(Apavorada, a Feiticeira Catrevage (pássaro) foge rapidamente. Troncho Sam se encolhe num canto. Seu Jefrésso, ritualístico, levanta o cajado)

Ordeno qui u tempo páre
Qui nada si mêcha máis

(Efeito de rangido lento pontua o movimento de Troncho Sam, em câmara lenta, que é paralisado tentando fugir. Seu Jefrésso emite um assobio fino com um instrumento de madeira que traz pendurado à cintura. Ouvem-se o estridente assobio da Caipora, sons de chicotadas no ar, e ela aparece, baforando seu cachimbo, saindo da mata. Seu Jefrésso a trata com gentileza)

Amiga, deusa das mata
Li chamêi pur pricisão

(Indicando o corpo de Edimundo Virgulino)

U homi nu chão tá morto
Assassinado à treição

Peço qui use a magia
Pra disatá seu distino
Tu inviveceno ele
Tá mi agradano i sirvino

Caipora:

(Com cortesia)

Eu cunheço esse rapáiz
É nobre seu coração
U seu desejo é di páiz 
Num merece morrê não

(Inicia o ritual sagrado da ressuscitação. O mesmo que realiza para tornar à vida os animais)

Convoco u pudê das mata
Dus vento dus ancestráis

(Ouve-se um vento forte e sibilante)

As fôça qui si disprende 
Das alma dus animáis

(Estrondo. Ela vai até o corpo de Edimundo Virgulino e dá três baforadas de seu cachimbo em cima de seu ferimento)

A vida qui tu perdeu
Da iscuridão vai voltá

(Emite zumbido de abelhas e vocalização de cantos indígenas, dançando ao redor do corpo. Para subitamente)

Agora foi permitido
Tu pode ressucitá!

(Forte zumbido metálico. A luz do mundo pisca em tons esverdeados. Edimundo Virgulino se mexe e vai se levantando lentamente como que acordando de um sonho. A luz volta à normalidade. Troncho Sam permanece paralisado)

Seu Jefrésso:

(Satisfeito. Para a Caipora)

Assim si fêiz a justiça
Renovo a minha aligria

Edimundo Virgulino:

(Meio tonto)

U qui foi qui si passô?
Eu durmí pur quantos dia?

Caipora:

Tu foi pego pelas costa
Num ato di covardia

(Cochicha algo para Seu Jefrésso, que vai até Troncho Sam e, com um toque do cajado em sua cabeça, o faz voltar ao normal)

Troncho Sam:

(Assustado, cambaleando)

Adonde qui eu istár?

(Topa em Edimundo Virgulino e se assusta).

A difunta num morreu!

(A Caipora lhe dá uma surra de chicote e ele sai em disparada para dentro da mata)

Caipora:

(Assobiando fino. Ritualística, para o lado por onde Troncho Sam saiu)
Ordeno qui volte aqui
Quem tá mandano sô eu

(Zumbido metálico. Vento forte)

Eu rogo à Mãe Naturêza
Qui pudê mi concedeu 
Permissão para puní
U homi qui vi fugí 
I na mata si iscondeu

(Um forte estrondo e ventania simbolizam a aprovação da Mãe Natureza) 

Qui Troncho Sam vire um pôico
Pra sirví di montaria

(Gargalhada sinistra. Fora de cena, Troncho Sam grita de dor e medo. Aos poucos os gritos vão se transformando em grunhidos e roncos de porco-do-mato. Entra e fica fuçando junto da Caipora)
Cem ano será tua pena
Dia i noite, noite i dia
(Monta no porco-do-mato (Troncho Sam) e some no interior da mata. Ouvem-se assobios e chicotadas)  

Seu Jefrésso:

(Aproximando-se do cangaceiro, entrega-lhe de presente um colar encantado)

Eu ti dô este colá
Qui’é du oráclo um presente 
Ispim di mandacaru
É u precioso pingente

Cum mijo di lubisome
Ele foi pur mim banhado
Tem maguinífco pudê
É um amuleto incantado

Pendura nu teu pescoço
Dele tu vai pricisá

(Edimundo Virgulino faz menção de perguntar algo e é interrompido)

Num faça pergunta agora
Na hora tu saberá

(Aperta sua mão em despedida)

Edimundo Virgulino:

(Emocionado)

Obrigado, Seu Jefrésso

(Saindo)

Vô meu distino infrentá 

(Sai. Seu Jefrésso ergue o cajado e uma forte trovoada apaga a luz do mundo. Escuro)


ENTREMEIO N.º 6
CATIRINA COBRA O PAGAMENTO DA APOSTA

(Entram Catirina e Mateus. A cena será trocada novamente para o Vale da Guengrena. Catirina está por cima, pois Edimundo Virgulino conseguiu decifrar o enigma da esfinge de Seu Jefrésso. Mateus está inchando de raiva)

Catirina:

(Rindo e mangando)

Onde istá teu Troncho Sam?

(Gargalha)

Virô foi pôico-du-mato

(Cobrando)

I u vistido, meu neguim?
Vá logo cumprino u trato

Mateus:

(Querendo se safar)

Inda num dêi pur pirdido
A moça nem si acordô...
Tenho fé qui u Bode-Preto

(Insinuando, ciumento)

Vai pegá u “seu amô”

Catirina:

(Raivosa)

Amô u quê, seu safado!
Eu sô muié di respeito

(Dá-lhe uns tapas)

Tu é qui num vale nada
É manchado teu conceito

(Inconformada)

Ai, num sei adonde eu tô
Qui num ti mato di pêa 
Todo fã du Coisa-Ruim
Merece mermo é cadêa

(Mais tapas)

Mateus:

(Desviando-se)

Máis foi tu qui cumeçô
Oiano pu cangacêro...

Catirina:

(Repreendendo-o)

Meu oiá nu’é di desejo
Fí da peste, seu fulêro

Mateus:

(Fingindo estar ofendido)

Ói, qué sabê d’uma coisa?
Eu já tô ino mimbora 

Catirina:

(Interrompendo-o)

Pircibí qual’é a tua
Qué tirá u côipo di fora
Só pra num pagá aposta
Bicho da cara di bosta

(Encarando-o)

Cadê tua palavra agora?

Mateus:

(Tentando contornar)

A istóra num si acabô
Dêche a donzela acordá
I aquele qui li bêjá
É di fato u vencedô

Catirina:

(A contragosto) 

Tá bom, tá certo, eu concordo...

(Música macabra já anuncia a próxima cena)

Mateus:

(Assustado) 

Vamo imbora, pu favô

(Saem rapidamente, de olhos arregalados para a mata. Escuro)


CENA 9
 EDIMUNDO VIRGULINO DERROTA O BODE-PRETO

(Vale da Guengrena. Fumaça escura. Um choro de mulher ao longe. Edimundo Virgulino entra cauteloso, seguindo o som. Aproxima-se do local onde supostamente estaria essa mulher. De repente, ouve-se o grunhido do Bode-Preto. O cangaceiro salta para o centro, olhando para todos os lados, à espera do ataque. O eco do grunhido se espalha. Uma pancada de trovão e falhar de luz antecedem a chegada do bicho. Inconformado com a derrota de seu pupilo Troncho Sam, está enlouquecido e sedento de sangue e vingança. Salta para cima de Edimundo Virgulino, empunhando seu tridente incandescente. O cangaceiro o encara com um pedaço de pau achado no chão)

Bode-Preto:

(Feroz)

Vim lá das treva profunda
Eu mermo fazê u sirviço
Li atraí até aqui
Onde é forte u meu feitiço

(Gargalhada macabra)

Tá quereno mi infrentá?
Adimiro a tua corage

Edimundo Virgulino:

(Heroicamente)

Pode vim, tô ti isperano
Quero vê como tu age

(Efeitos sonoros. Luta renhida entre os dois contendores. A besta tem grande desenvoltura no uso do tridente. Edimundo, em desvantagem por não ter arma, esquiva-se habilmente das investidas do Bode-Preto. Consegue atingi-lo com o pau, mas ele nem sente, pois sua couraça é dura e impenetrável. Durante a luta, o Bode-Preto solta grunhidos horríveis e assustadores. Num movimento errado, Edimundo Virgulino cai vencido. A fera se prepara para o golpe fatal, erguendo bem alto o tridente para cravá-lo no peito do cangaceiro. A luta passa a se desenvolver em câmara lenta. Neste momento, Edimundo ouve a voz de Seu Jefrésso)

Seu Jefrésso:

(Áudio. Somente Edimundo escuta)

Edimundo Virgulino
U amuleto põe na mão
Infia ele bem fundo
Lá dento du coração
Du terríve Bode-Preto
É tua única salvação
(Edimundo Virgulino reage e enfia o espinho de mandacaru banhado em mijo de lobisomem no coração do Bode-Preto. A besta solta um gemido horrendo e desaparece sob densa fumaça vermelha. O cangaceiro se recompõe e segue, cansado, sua viagem. Escuro)


ENTREMEIO N.º 7
 A CATIRINA ENGRAVIDOU

(A cena vai ser trocada para o sítio devastado. Entram Catirina e Mateus. Ela cantando alegremente. Ele desconfiado de sua alegria)

Catirina:

(Cantando, faceira)

Eu só tem pena nu mundo
Di quem num possui amô
Pois um coração vazí
É coisa di sofredô

I Maria tá na cunzinha
I Jusé tá na jinela
U café já tá freveno
U bolo tá na tigela

U bêjo qui tu mi deu
Fêiz tremê minhas canela
Aquele abraço apertado
Mi dêchô branca i amarela

(Dança)

Mateus:

(Irônico)

Már minino, qui aligria
Tu parece pinto im bosta

(Com ciúmes)

Pra quem tu freveu café
Abastano eu dá as costa?

I esse bêjo i esse abraço...
É di ôto qui tu gosta?    

Catirina:

(Amorosa. Beijando-o)

Eu tem duênça é pur nêgo
Bem safado qui nem tu
Ôto homi nur meus ói
Num passa di um caititu

(Segredando alegremente)

Vô dizê u’a nuvidade
A maió qui Deus mi deu
Já fiz teste na cidade

(Suspense carinhoso)

Eu vô tê um filho teu

(Abraça-o)

Mateus:

(Saltando de alegria)

Eu vô sê pai dum neguim

(Para ela)

Ele vai tê a mi’a cara
Um preto bem bunitim

(Idéia)

I u nome vai sê Mateu
Im omenage a mim

Catirina:

(Dengosa)

Vem cá, meu tição di fogo

(Alisando-o)

Um bebê pra nóis tá vino
I eu quiria qui u nome fosse
Edimundo Virgulino...

Mateus:

(Num rompante, saltando de lado)

Tava bom pra sê verdade
Eu mereço essa maldade

(Para ela)

É meu mermo esse minino?

Catirina:

(Com firmeza)

Claro qui é, seu bestão
Só quero omenagiá 
U herói deste lugá

(Carinhosa)

Num tenha ciúme não...

(Abraça-o, beija-o, alisa-o)

Mateus:

(Cedendo, com interesse)

Tá bom, eu vô consintí
Bote u nome qui quisé 

(Esperto)

Máis tu tem qui disistí
Qu’eu mi vista di muié 

Catirina:

(Sem saída)

Muito ispertim pu meu gôsto...
É u cão chupano manga
Si apruveita inté du fí
Pra fazê di suas munganga

Ao meno tu reconhece
Qui u Troncho foi derrotado

(Firmando o compromisso)

Tá tudo certo, eu concordo
Nosso acordo tá mudado 

(Abraçam-se. Música instrumental brega romântica. Mateus beija sua barriga. Saem conversando alegremente. Escuro)


CENA 10
 O TRIUNFO DO AMOR

(Sítio devastado. Luz do dia. Música triste orquestrada. Catirina e Mateus entram carregando a liteira com Donzela Flor. Colocam-na no centro da cena e saem com cara de tristeza. Dona Colombina e Vicença choram desanimadas. Pafúncio Pedregôso olha ao redor e adiante, esperando que a Feiticeira Catrevage apareça. Cafuçú está triste num canto) 

Dona Colombina:

(Chorosa)

Ai, mi’a gente, ôje é u dia
Qui a sorte será provada

(Para Donzela Flor na liteira)

Linda flô adurmicida
Sofreno sem devê nada

Vicença:

(Comovidíssima)

Pagano a conta dus ôto
Flô vai sê santificada...

(Assua o nariz) 

Dona Colombina:

(Levanta-se, num impulso de ânimo)

Eu vô vê si alguém vem vino

(Para)

Um dus dois nobre guerrêro

(Aflita)

Quem tivé u pudê du bêjo
Quêra Deus chegue premêro

(Sai) 

Cafuçú:

(Velando)

Cada cá tem sua sina
Tão jove, tão chêa di vida...

Vicença:

(Encostando-se a Cafuçú. No mesmo tom)

Cada cá tem sua sina
Tão jove, tão chêa di vida...

Pafúncio Pedregôso:
(Cortando. Bruto)

Vá parano a latumia
A mi’a fía num tá murrida!

(Entra Dona Colombina. Na verdade é a Feiticeira Catrevage que nela se transformou, depois de lhe dar um sumiço na mata. A falsa Dona Colombina deve apresentar algum gesto característico que lembre a feiticeira. Traz uma touceira de flores negras. Todos se espantam)

Dona Colombina (Catrevage):

(Chorando exageradamente)

Num tem máis jeito, Pafúnço
Ninguém voltô da viage

(Soluçando, entrega-lhe uma carta)

Tá tudo aqui nesta carta
Quem mandô foi Catrevage

(Depositando as flores junto da donzela)   

Eu trôssi essas flô qui achêi
Para a últma omenage 

Pafúncio Pedregôso:

(Lendo a carta, aflito)

“Troncho Sam morreu di sede
Pirdido nu mêi da mata
Edimundo Virgulino
Num disse a resposta izata
I a isfinge li transformô
Nu’a istauta di barro i lata”

(Amassando a carta, com ódio)

Tudo pur causa das planta
Dus bicho qui mora aquí

(Endemoninhado)
U meu ódio só aumenta
I tudo vô distruí 

Cafuçú:

(Aos prantos, olhando para a moça inerte)

Cada cá tem sua sina
Tão jove, tão chêa di vida...

Dona Colombina (Catrevage):

(Choro falso, seguida por Vicença)

Eu detesto este lugá...
Mi tirô minha criança

(Para Pafúncio Pedregôso, encarando-o com firmeza)

Quero tudo devastado
Tombém desejo vingança

(Cafuçú estranha a atitude violenta de Dona Colombina e passa a observá-la com desconfiança. Ela volta ao choro falso e alongado)

Num á máis nada a fazê
Só isperá pra interrá ela

(Assuando o nariz)

Cuma é qui vô vivê
Sem mi’a quirida donzela?

(Chora mais afetadamente. Pafúncio Pedregôso vai para junto da liteira)

Cafuçú:

(Aproximando-se da falsa Colombina)

A si’óra si sente bem?

(Nota o amuleto de caveira em seu pescoço. Espantado)

Isso é di Catrevage
A patroa tem um tombém?

(Dona Colombina puxa Cafuçú para um canto sem ser notada por Pafúncio Pedregôso e Vicença)

Dona Colombina (Catrevage):

(Cochichando)

Máis respeito co’o velóro
Tua pergunta num convém 

Cafuçú:

(Também cochichando)

Vô falá cum seu Pafúnço
Pur aqui tem algo errado

(Faz menção de sair e Dona Colombina lhe toma a frente e mostra o amuleto com um movimento pendular, hipnotizando Cafuçú) 

Dona Colombina (Catrevage):

(Ritual de hipnose, cochichando)

Olhe bem nesta cavêra
Cafuçú, meu comandado

(Cafuçú fica com cara de hipnotizado, com os braços soltos e andar estranho)
Pafúncio Pedregôso:

Tá aveno algum poblema?!

Dona Colombina (Catrevage):

(Disfarçando)  

Cafuçú tá emocionado...

(Ainda para Pafúncio Pedregôso, de longe)

Ele vai buscá cidrêra
É bom tê chá preparado

(Para Cafuçú, baixinho)

Colha erva venenosa
Quero tudo misturado

(Ri baixinho, maldosamente. Cafuçú sai. Dona Colombina vai até Pafúncio Pedregôso, abraça-o e chora junto da donzela. Em áudio, a mesma música triste orquestrada do início da cena. Na música, a noite vai surgindo. Canto de ave agourenta. Donzela Flor está prestes a completar dezoito anos e se consumar a maldição. Cafuçú entra e fica num canto, lesadão, segurando uma bandeija grande com jarra de chá e xícaras. Vicença vai ajudá-lo)  

(Com disfarçada impaciência)

Tá faltano pôco tempo

(Choro falso. Faz que passa mal)

Pafúnço, vô dirmaiá...

(Ele a acode)

Pafúncio Pedregôso:

(Com fúria incontida)

Tudo cupa da Caipora

(Grita na direção da mata)

Juro qui vô ti matá!

Dona Colombina (Catrevage):

(Fingida)

Si conforme, amado isposo...
Beba um poquim du meu chá

(Acena para Cafuçú, que vai servir o chá quando é interrompido pela entrada inesperada de Edimundo Virgulino. Um assobio estridente assusta Cafuçú, que tromba com Vicença e deixa cair a bandeija, derramando todo o chá envenenado. Pafúncio Pedregôso se enche de esperança)

Edimundo Virgulino:

(Triunfal)

Vim cumprí u prometido
Salvarei Donzela Flô

Dona Colombina (Catrevage):

(Gritando, insana) 

Ela vai tê qui morrê
U prazo já si acabô

(Todos ficam espantados. Arranca um galho de árvore queimada e parte para a liteira, sendo agarrada por Vicença, que nada entende. Fica se debatendo e gemendo como fera agonizante. Escuro brusco (mudança de atriz/personagem). Luz. A feiticeira se destransforma, sendo desmascarada. Vicença solta-a. Uma estranha fumaça sai do seu amuleto. Um grunhido do Bode-Preto soa como que chamando Catrevage de volta às profundezas. Escuro. Luz. Resta apenas seu amuleto no chão. Cafuçú, que voltara ao normal, apanha-o e sai por onde ela se foi. Música. Edimundo Virgulino dirige-se à Donzela Flor e lhe beija nos lábios com amor. O dia amanhece misteriosamente com um forte clarão iluminando o lugar. Trovoadas ecoam, assobios sibilantes são ouvidos. A donzela finalmente é desencantada e se acorda. Levanta-se esplendorosa. É a apoteose do amor, a vitória do bem contra o mal. A música para de repente. Cafuçú entra chorando com Dona Colombina nos braços. Vicença explode num choro altíssimo e subitamente se contém, ficando apenas a cadenciar a respiração chorosa, de olhos arregalados para a patroa. Pelo outro lado, entra a Caipora, depois de um forte assobio, amedrontando a todos. Donzela Flor tira o sorriso do rosto e entristece. Pafúncio Pedregôso recebe o corpo de Dona Colombina e chora)

Caipora:

(Justiceira. Altiva)

Meu sirviço tá incompleto
Inda resta um criminôso
Vai virá pôico-du-mato
Seu Pafúnço Pedregôso

(Ergue a mão na direção dele)

Donzela Flor:

(Com lágrimas nos olhos, para a Caipora)

Pu favô, mi dê licença

(Silêncio total)

Dezoito ano eu penei
U meu sono foi tortura
Só ôje chegô mi’a cura
Conforme manda sua lei

(Abraça amorosamente o corpo da mãe. Chorando, toca o rosto do pai)

Li suplico mi’a sinhora
Dê a ele seu perdão 

(Indicando a mãe)

Si mereço sê filiz
Tem pur ela compachão

(Olhando-lhe nos olhos)

Si num posso tê sua lúiz
Mi devôva a iscuridão

(Choro sofrido. Música de fundo. Suspense. A Caipora arrodeia o casal, pensativa, depois dá seu veredicto)

Caipora:

(Sóbria. Fria)

Tu é símblo di isperança

(Aproximando-se)

Isperamo teu retorno
Derne quando era criança

(Bondosa)

Colombina viverá
I Pafúnço Pedregôso
Di ôto jeito vai pagá

(Todos se alegram. Sentenciando)

Toda noite di lua chêa
Nu mato vai caminhá
Pra cuidá dus animal 
I a floresta vigiá  
Dicíplo di Seu Jefrésso
Daqui pra sempre será

Toda riquêza qui há
Toda água qui nascê
Para todos sirvirá

(Pafúncio Pedregôso faz reverência em sinal de profundo agradecimento) 

A Donzela i u Cangacêro
São pur mim abençuado

(Forte assobio. Trovoadas. Ritual. Ela solta três baforadas do cachimbo em Dona Colombina, que torna à vida e abraça Donzela Flor, emocionada e feliz. Do céu descem galhos verdes com frutos e flores diversos, como que renascendo. Pássaros cantam. Vento sopra brandamente. Som de água escorrendo. Todos ficam maravilhados. A Caipora continua seu decreto. Mãos erguidas para os céus)

I agora u Sítio Fundão
Será todo preservado

(Música. No centro, Donzela Flor e Edimundo Virgulino. Ladeando-os, abraçam-se Pafúncio Pedregôso e Dona Colombina, assim como Cafuçú e Vicença. A Caipora pinota e assobia, chicoteando o ar)  


EPÍLOGO
A FESTA DA LIBERDADE

(A orquestra dá o tom instrumental. A Catirina e o Mateus entram cantando, sendo acompanhados em coro pelos demais)     

É grande nossa aligria
Gato-du-mato, Raposa
U Macaco i sua isposa
Veado, Tatu, Cutia
Guaxinim, Jibóia, Jia 

Siriema, bem facêra
Si danô, namoradêra
Pica-Pau, Anum, Jacú
Periquito, Rôla Azú
Vão caí na gafiêra

U Sabiá i u Chorró
Combinaro co’o Ferrêro
Fizero um coral ligêro
Vão cantá im lá maió

Cubano a situação
Tapano seus ói co’ar mão
Bem distante du chamego
Nóis vimo u nobre Mucego
Irritado co’o clarão

Pras planta qui habita aqui:
Amarelo, Jatobá
Mucunã i Catuaba 
I tombém Pé di Cajá 
U Visguêro i u Murici
U Pau d’Arco i u Jiquiri
I as ôta toda qui há
Só vai tê filicidade
Nunca máis vão si queimá

U Soldadim du Araripe
U Canáro i u Bêja-Flô
Cantaro im velso matuto
Canção di páiz i di amô

I u nosso Sítio Fundão
Num viveu máis disispêro
Incontrô sua salvação
Co’a Donzela i u Cangacêro

(Escuro)

FIM

Cacá Araújo




DESCRIÇÃO DAS PERSONAGENS

Donzela Flor – Bela jovem, filha de Pafúncio Pedregôso e Dona Colombina, é uma espécie de princesa sertaneja.

Caipora – Mito universal, protetor dos bichos da floresta. Em conformidade com a tradição nordestina, é uma índia de cabelos longos, pés para trás, fuma cachimbo e monta um porco-do-mato (caititu). Tem o poder de ressuscitar os animais. 

Pafúncio Pedregôso – Fazendeiro ambicioso, cruel, maquiavélico e calculista, quer adquirir o Sítio Fundão para lá construir um condomínio habitacional e uma fábrica de sandálias. 

Dona Colombina – Esposa de Pafúncio Pedregôso, bondosa e meiga.

Feiticeira Catrevage – Má, bela, ambiciosa, gasturenta, tem o poder de se transformar no que quiser. É serviçal do Bode-Preto, senhor supremo das trevas.

Troncho Sam – Estrangeiro norte-americano, tem um pacto com a Feiticeira Catrevage. Ardiloso, traiçoeiro, perigoso, falso, cruel, covarde, desconfiado. Veio a serviço de seu governo para conquistar o Sítio Fundão e lá instalar uma base militar para conquistar o país. Veste fraque afrescalhado como os anti-nobres americanos do norte e usa uma cartola igual à da mascote imbecil dos EUA denominada Tio Sam.  

Edimundo Virgulino – Corajoso e valente, é um cangaceiro às avessas: um homem justo, bom e sincero. Herói, derrota o Bode-Preto, salva o Sítio Fundão da devastação e se casa com Donzela Flor. Esta personagem é um reconhecimento e homenagem à perseverança e tenacidade com que o radialista Edmundo “Ed” Alencar, neto de Jefferson da Franca Alencar, vem desenvolvendo incansável luta em defesa da preservação do Sítio Fundão. 

Seu Jefrésso – Espécie de esfinge sertaneja que habita o oráculo do Sítio Fundão. É um velho magro, alto, semblante terno, roupas e longas barbas brancas, calça sandálias de couro, tem duas asas feitas de trançados de palmeiras verdes. Esta personagem é um tributo ao ecologista popular Jefferson da Franca Alencar, falecido em 1986, proprietário do Sítio Fundão, hoje periferia do Crato-CE, uma área de floresta nativa, flora e fauna diversificadas, casa de taipa com pavimento superior, engenho construído no tempo da escravatura. Os herdeiros, com forte apoio de variados segmentos da sociedade, lutam pela transformação do sítio num parque ecológico sob a tutela do Estado. 

Bode-Preto – Uma das formas do Diabo, de acordo com a mitologia sertaneja. Quer transformar o Sítio Fundão numa colônia do Inferno. Tem cabeça e pés de bode. Dedos e unhas são garras monstruosas. Olhos vermelhos luminosos. De sua enorme boca com presas afiadas e aparentes, escorre uma baba gosmenta pendurada. Usa um tridente vermelho incandescente.

Cafuçú – Capanga de Pafúncio Pedregôso, meio lesado, mas inteligente. 

Vicença – Empregada de Dona Colombina. Moça-velha, meio lerda, nutre uma forte e dissimulada paixão por Cafuçú.

Catirina – Personagem do Reisado, é uma negra faceira, valente, ciumenta e encrenqueira.
Narra, conta e comenta os fatos sempre com graça e humor. 

Mateus – Faz par com a Catirina no folguedo do Reisado e nesta história. É um negro tiziu, esperto, conquistador, cínico, porém submisso aos desejos dela.



PROJETO DE MONTAGEM


I - SINOPSE:

A ambição desmedida do homem rico, a ganância cruel do norte-americano e a trama infernal vinda das trevas ameaçam o Sítio Fundão, importante reserva ecológica brasileira. As forças do mal, lideradas pelo Bode-Preto, entram em disputa ferrenha pelo domínio da área, mas são enfrentadas pela legião do bem, liderada pela Caipora, deusa protetora da natureza. Somente o amor pode salvar o sítio da destruição total. Um enigma, proferido pela esfinge de Seu Jefrésso, contém o segredo capaz de restabelecer a paz e a harmonia. Donzela Flor, símbolo de pureza, precisa ser desencantada. O cangaceiro Edimundo Virgulino, valente e destemido, luta com bravura para salvar o sítio e conquistar o coração da donzela.


II - DURAÇÃO DO ESPETÁCULO: 1h40min


III - INDICAÇÃO: 12 anos


IV - PROPOSTA DO ESPETÁCULO:

Ao abordar a ecologia e o meio ambiente a partir de motivo factual doméstico, neste caso a luta pela preservação do Sítio Fundão, importante reserva ecológica na zona urbana na cidade do Crato-CE ameaçada de extinção, o espetáculo amplia o foco ao propor uma leitura da gana imperialista capitaneada pelos EUA, usurpadores das riquezas alheias. Envereda também pelo universo histórico e mítico do homem nordestino e universal, revisitando o cangaço e o mito da Caipora numa história fantástica, mas embrenhada “na” e “de” realidade.

"A Donzela e o Cangaceiro", obra premiada pela Funarte em 2007 e pelo VI Edital de Incentivo às Artes do Governo do Estado do Ceará 2010, é um projeto teatral que dá prosseguimento à determinação do dramaturgo Cacá Araújo em buscar a afirmação de uma dramaturgia nordestina e universal alinhada ao resgate e à difusão da cultura tradicional popular, fundada na expressão do imaginário do povo, nas lendas, nos mitos, nos causos, nas aventuras, nos romances, na história, nos mistérios que habitam a alma afoita e brincante do sertanejo, cujo sangue saltitante se perpetua no riso e na dor, na graça e no sofrimento, na desventura e na esperança.


V – PROPOSTA DO ESPETÁCULO:

Informações Conceituais

1. Apresentação:

Ao abordar a ecologia e o meio ambiente a partir de motivo factual doméstico, neste caso a luta pela preservação do Sítio Fundão, importante reserva ecológica na zona urbana na cidade do Crato-CE ameaçada de extinção, o espetáculo amplia o foco ao propor uma leitura da gana imperialista capitaneada pelos USurpAdores das riquezas alheias. Envereda também pelo universo histórico e mítico do homem nordestino e universal, revisitando o cangaço e o mito da Caipora numa história fantástica, mas embrenhada “na” e “de” realidade. 

A Donzela e o Cangaceiro é um projeto cênico que dá prosseguimento à determinação do autor em buscar a afirmação de uma dramaturgia nordestina alinhada ao resgate e à difusão da cultura tradicional popular, fundada na expressão do imaginário do povo, nas lendas, nos mitos, nos causos, nas aventuras, nos romances, na história, nos mistérios que habitam a alma afoita e brincante do sertanejo, cujo sangue saltitante se perpetua no riso e na dor, na graça e no sofrimento, na desventura e na esperança.
2. Objetivos:

2.1. Disseminar proposta de estética dramática que prioriza os elementos formadores da cultura nordestina e brasileira;
2.2. Atuar no desenvolvimento do teatro como instrumento de resgate, apreciação, valorização e desenvolvimento das tradições populares nordestinas e brasileiras;
2.3. Abordar a questão ecológica como estratégia de educação e conscientização para a preservação da natureza;
2.4. Proporcionar a retomada da auto-estima a partir da valorização da cultura, do meio ambiente e das tradições locais, enfatizando a mitologia cearense e nordestina;
2.5. Contribuir no fortalecimento da identidade cultural nordestina e brasileira.

3. Justificativa:

A Donzela e o Cangaceiro desenvolve, utilizando motivos e abordagens locais, uma história de ficção ancorada em importantes e reais bandeiras de luta ecológica e na universal mitologia sertaneja, fortalecendo, com isso, a ação de visitar e revisitar a cultura tradicional popular, o que, indubitavelmente, repercutirá de forma positiva no ritual permanente de consolidação da cultura nordestina e brasileira, principalmente em nossa terra, e daqui para o resto do mundo. 

Destacam-se, ainda, no espetáculo as seguintes evidências e possibilidades:

3.1. Difunde valores do folclore e da cultura nordestina através de estética dramática sertaneja, alinhada ao imaginário popular e ao resgate de tradições ancestrais, que remontam aos processos iniciais de formação do povo brasileiro, a partir de matrizes de origem ameríndia, africana e européia;
3.2. Oportuniza a formação de plateias, especialmente juvenis, inspirando senso crítico e auto-estima em termos de identidade cultural e desenvolvimento humano, potencializando-as para o convívio e interação com outras culturas e linguagens artísticas;
3.3. Estimula a congregação de estudiosos, pesquisadores, produtores, atores, encenadores, mestres da cultura tradicional popular, brincantes, autores e técnicos em torno da discussão de proposta estética de leitura e releitura da história, das tradições e do imaginário do sertão nordestino como fonte inspiradora de criação em artes cênicas, literatura, música, dança e noutros processos de manifestação da alma indômita e inquieta do artista nordestino;
3.4. Contribui na discussão referente à ecologia e aos processos de preservação da natureza, fortalecendo a luta em defesa da qualidade de vida a partir de desenvolvimento sustentável não predador nem agressor nem destruidor da fauna, da flora, e ou de homens e mulheres.
3.5. Fortalece a concretização do Parque Ecológico do Sítio Fundão, já iniciada pelo Governo do Estado do Ceará, cuja área de 97 hectares situada na periferia do Crato, região do Cariri cearense, ainda registra resquícios da Mata Atlântica e fauna diversificada. 
3.6. Incentiva a valorização do artista e do produto cultural como importantes e fundamentais na geração de emprego, renda e desenvolvimento sócio-cultural com dignidade e valorização humana.

4. Elementos Estéticos e Conceituais da Cena Brincante:

A estética brincante de encenação reside na incorporação de elementos da cultura tradicional popular na concepção de seus traços constitutivos, quais sejam:

4.1. Dramaturgia que busque temática alinhada aos contos, causos, lendas, romances e aventuras bebidas do vasto imaginário e romanceiro populares, da sabedoria ancestral de base ibérica, ameríndia e africana.
4.2. Interpretação que se construa a partir do e no universo dos folguedos, dos cantadores, emboladores, rabequeiros, penitentes, cânticos e dançares negros e indígenas, palhaços, pássaros e bichos da nossa fauna, brincadeiras e brinquedos populares, esculturas e objetos artesanais, bonecos e desenhos animados, temperada com elementos do Circo, da Gestualidade Física e Espiritual Nordestina e da Commedia dell'Arte.
4.3. Carpintaria Técnica que produza cenografia, figurino, maquiagem, coreografia, caracterização, sonoplastia, música e iluminação, fundados na xilogravura, nas inscrições rupestres, nos símbolos rurais, nos desenhos de crianças, nos cantos, danças, cantigas e instrumentos musicais populares, nas cores e sons primitivos da natureza sertaneja.


Crato-CE, janeiro de 2012.


*Cacá Araújo – Poeta, dramaturgo, diretor, ator, professor, produtor cultural e folclorista.   

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