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Xilogravura: Hamurábi Batista |
AUTO DO CALDEIRÃO – Texto completo
(Oswald Barroso)
Personagens:
BEATO
PADRE CÍCERO
FLORO
SEVERINO
ISAIAS
MARINA
JOAQUINA
BISPO DO CRATO
DEPUTADO
VICENÇA
CHEFE DE POLÍCIA
ZÉ BEZERRA
INTERVENTOR
MULHER DO INTERVENTOR
LOUCA
SEBASTIÃO MARINHO
SOLDADOS
ROMEIROS
MULHERES
PASTORAS
BRINCANTES
VELHO
MENINO
VAQUEIRO
PAPAGAIO
COVEIRO
BERNARDINO
CENA 1 (Alegoria de bumba-meu-boi)
PASTORAS: (cantam)
Boi Mansinho
Sou romeiro, romeirinho
Romeiro do Meu Padrinho
Em nome dos lavradores
Da Senhora Mãe das Dores
Vim apresentar reisado.
Meu Beato Zé Lourenço
Vim dizer o que eu penso.
Nesse estirão de légua
Coração nunca tem trégua
Muita dor é o que trago.
Caldeirinha, Caldeirão
Caldeira, meu coração.
Minha Beata Mocinha
Vim apresentar função.
VAQUEIRO: (abóia)
Vem brincar ê Boi Mansinho
Do coração encarnado
Manso como um passarinho
Numa espingarda pousado.
Esse boi á rei sem trono
Uma ovelha desgarrada
É um barbatão sem dono
Da cabeça levantada.
Vem brincar ê Boi Mansinho
Vadiar Boi Mandingueiro
Vem desempatar caminho
Nas léguas desse terreiro.
BRINCANTES (cantam)
Já chegou ê Boi Mansinho
Já chegou fulô de cheiro
Pra dançar devagarinho
Para balançar maneiro.
Para dançar nesse passo
Esse boi não tem senhor.
A esse boi só prende o laço
Das azuis fitas do amor.
Esse boi é boi malhado
Sem curral, porteira ou lenço
Esse boi, são os cuidados
Do Beato Zé Lourenço.
FLORO: Alto lá, que aqui chegou
Dom Floro Bartolomeu.
Com toda autoridade,
Vim buscar o que é meu.
No Juazeiro do Norte
Quem manda agora sou eu..
BRINCANTES: (cantam)
Já chegou, chegou, chegou
Já chegou a Besta-Fera
Com seus quatro Capas-Verdes
Espalhando horror e guerra.
BEATO: Doutor Floro, me apresento
Doutor Floro, aqui estou.
FLORO: Com quem é, que estou falando?
Com quem falando eu estou?
BEATO: O senhor está falando
Com o beato que chegou.
Lourenço, da Baixa d’Anta,
Que também chamam José,
preto, alto e desilustre,
incapaz de estar de pé
diante vossa presença!
FLORO: Mas me diga com quem é
Mesmo que estou falando?
BEATO: Com o Beato José
Lourenço, da Baixa d’Anta,
Incapaz de estar de pé
Diante vossa presença!
FLORO: Mas me diga com quem é,
Mesmo que estou falando?
BEATO: Com o Beato José
Alto, preto e desilustre,
Incapaz de estar de pé!
FLORO: Pois, negro, você tá preso,
Porque não sabe quem é!
BRINCANTES: (cantam)
Lá caiu o Zé Lourenço
Nos laços da Besta-Fera
Mas o boi faz dois volteios
Enquanto sua gente espera.
FLORO: (recita)
E esse boi todo enfeitado
Metido a bom e faceiro?
Histórias de boi dançar
São artes de feiticeiro.
Isso é puro fanatismo
De cabra ruim, ordinário.
Apareça agora quem
É do boi, proprietário.
BRINCANTES: (cantam)
Esse boi é da colina
Do vento de longe e de perto
É a fulô da Irmandade
Da Santa Cruz do Deserto.
FLORO: (recita)
Todo boi tem um mourão
Onde é marcado e vendido
Para enricar seu patrão.
Boi sem dono é proibido.
BRINCANTES: (cantam)
Pois desse boi não se tira
Couro, salame ou dinheiro,
Ele só sabe brincar
Brincadeira de terreiro.
FLORO: (recita)
Então vamos ver agora
O bailado que ele dança.
Na ponta da minha espada
Já esse boi se balança.
BRINCANTES: (cantam)
Corre, corre, Boi Mansinho
Vai em busca de guarida.
Valei-nos Padrinho Cícero
Essa espada é bem comprida.
FLORO: Na ponta do meu facão,
O tal boi santo morreu.
Nos limites dessa terra,
Quem faz milagre, sou eu.
BRINCANTES: (cantam)
Morreu, morreu, Boi Mansinho
O boi do laço de fita
Mas todo boi de brinquedo
Comentam que ressuscita.
CENA 2
(Casa do Padre Cícero. Ele conversa com o Beato)
BEATO: Mandou me chamar, Padrinho?
PADRE CÍCERO: Lhe devo uma explicação.
BEATO: Quem deve sou eu, Padrinho
Lhe prestar satisfação
Da morte do Boi Mansinho
Que recebi de sua mão.
PADRE CÍCERO: José, o que aconteceu
Foi com meu consentimento.
BEATO: Então, por que permitiu
Este grande sofrimento?
PADRE CÍCERO: Há coisas que a gente faz
Mesmo sem contentamento.
Nossos inimigos falam
Mentiras sobre Juazeiro
Dizem que somos fanáticos
Hereges e curandeiros.
Falam que aqui se adorava
O boi como milagreiro.
BEATO: Mas isto é só falsidade.
Do boi eu sempre cuidei
Como um filho. Com cuidado,
O barbatão amansei.
De milagre só vi mesmo
As chifradas que levei.
PADRE CÍCERO: Mas o povo ao seu redor
Exagerava no zelo.
Tirava raspa do casco
Fazia remédio do pelo
Fazia ungüento do chifre
E do estrume, tempero.
Enquanto eram os políticos
E os jornais a reclamar
Do perigo da heresia,
Eu preferi me calar.
Mas agora a santa Igreja
É que começa a falar.
BEATO: Mas o povo só cuidava
Do boi com muito carinho
Porque era boi querido
Presente do Meu Padrinho.
Enfeitava o boi de fita
Chamava o boi de Mansinho.
PADRE CÍCERO: No que me diz, acredito,
José, mas tenha cuidado,
Querem fazer do Juazeiro
Um território arrasado.
Os inimigos são muitos,
Gente importante do Estado.
Floro mesmo já me disse:
Não quero esse negro aqui!
E ainda assim é defensor
Das causas do Cariri.
A calúnia aqui viceja
Como safra de piqui.
BEATO: Meu povo é de paz, Padrinho!
PADRE CÍCERO: Mas é criado em liberdade
Por isso que mete medo
Ao poder da autoridade.
BEATO: Meu Padrim estou disposto
A toda adversidade.
PADRE CÍCERO: Querem lhe pôr para longe
E talvez seja preciso.
BEATO: Não sei como ouça, Padrinho,
Este terrível aviso.
PADRE CÍCERO: Mas se acalme, Zé Lourenço,
Lhe retiro o prejuízo.
BEATO: Meu povo não pode ir
Pra longe do Meu Padrinho.
PADRE CÍCERO: Se conforme, Zé Lourenço
Pois será outro seu ninho:
As terras do Caldeirão
Que não fica aqui pertinho.
Não é terreno tão grande
Nem tão bom para o plantio.
Não tem poço, nem açude
Nem mesmo água de rio.
Quero ver como responde
Este novo desafio.
BEATO: Minha gente é do trabalho,
Não teme carga pesada.
Prefiro terra bem árida
Mas que não seja alugada.
Nenhum terreno resiste
Ao gume da nossa enxada.
PADRE CÍCERO: Mas se prepare, meu filho,
Para o que der e vier.
Se lhe perseguirem corra
Com toda a força do pé.
Leve consigo sua gente
E lá trabalhe com fé.
No Caldeirão, outro boi,
Você cria em liberdade.
Faz um reino de justiça
Com trabalho e caridade.
Não deixe meu povo pobre
Passar por necessidade
BEATO: Adeus, adeus, Meu Padrinho
Que nos visite eu espero.
PADRE CÍCERO: Não sei não, José Lourenço,
Nem sempre faço o que quero.
Que a Mãe de Deus o proteja
Contra o destino severo.
CENA 3: (Sítio Caldeirão. Sebastião canta acompanhado de uma viola. Isaías, administrador do lugar, conversa com Joaquina, mulher de Severino Tavares.)
SEBASTIÃO: “Filho, meu irmão de luta
Trabalha com contrição
Para ajudar-me a vencer
O furioso dragão
E evitar de se ver
Tão horrenda perdição.
Quem esta cruz conduzir
Perante Deus não é réu
É a primeira das chaves
Que abre a porta do céu
A bandeira triunfante
O mais seguro troféu.
Homem não cochile tanto
Quem dorme muito adoece.
O homem que dorme muito
Até de Deus se esquece.
Quando pega a cochilar
Não sabe mais se ajeitar
Abre a boca, a baba desce.”
(Versos de domínio popular.)
JOAQUINA: Acorde, acorde Seu Isaías
Logo chega, Severino.
ISAÍAS: Mas quem é? Nem sei quem sou!
Onde estou, que não atino?
JOAQUINA: Êita, sujeito esquecido!
ISAÍAS: Quando eu durmo, perco o tino.
JOAQUINA: Estamos no Caldeirão
Do beato José Lourenço
Comunidade de pobre
À qual também eu pertenço
E você é mestre Isaías
Acaso for quem eu penso.
Mestre bom, trabalhador
Embora tão dorminhoco.
Severino, meu marido
Vai chegar daqui a pouco.
Andando pelo sertão,
De pregar já ficou rouco.
ISAÍAS: Então, eu não sei, Joaquina,
A causa de sua alegria!
Desculpe dormir tão cedo
Foi bem pesado o meu dia.
No Caldeirão se trabalha
Sem fazer economia.
JOAQUINA: Pois não faça economia
Hoje meu dia é de sorte
Severino logo chega
Lá do Rio Grande do Norte.
Minha ração de alimento
Você prepare mais forte.
ISAÍAS: Vou colocar jerimum
Farinha, feijão e arroz.
Por causa do Severino
Vou abater um dos bois.
Comida que dá pra um
Vou aumentar para dois.
BEATO: Bem pensado, Mestre Isaías
Severino vem com gente
Lá do Rio Grande do Norte,
Modesta, pobre, indigente.
Povo que foi perseguido
Por ser honesto e decente.
ISAÍAS: Mas de tantos retirantes
O Caldeirão anda cheio.
O que temos produzido
Acaba servindo ao alheio.
Daqui a pouco, falta tudo!
É do que tenho receio.
BEATO: Mestre Isaías, esta gente
Também sabe trabalhar.
Lhe dê foice, dê enxada
E semente pra plantar!
Terra dura é o que não falta
Para esse povo amansar.
ISAÍAS: Mas tem velho, tem menino
Tem mulher e aleijado.
BEATO: Eu sei que tem, Mestre Isaías,
Todo esse povo enjeitado.
Mas nossa fé não permite
Lhe deixar desamparado.
Nossa irmandade é do pobre
De toda criança com fome,
De todo velho humilhado,
De toda mulher sem nome,
Escudo do desvalido
Proteção que nunca some.
A irmandade é do romeiro
Pequeno que quer viver.
Como aquela gaivota
As suas asas vão bater,
Fugindo da precisão
Pra felicidade obter.
TODOS CANTAM: (Com o Beato) Voa, voa gaivota
Quisera ir na sua rota
Pra viver dessa água viva
Que só existe no mar.
Em terra de verdes ondas
Sertão de roça marinha
Entre peixes encantados
Eu faria a camarinha
De um cardume de estrelas
De um corcel azul celeste
Pra viver longe da peste
Que arrasa os continentes.
Voa, voa gaivota
Quisera ir na sua rota
Pra viver dessa água viva
Que só existe no mar.
Mas sou triste passarinho
Ave de asa partida
Pra voar pelos caminhos
Em busca dessa outra vida
Por isso armei o meu ninho
Num sopé qualquer de serra
E trabalhando na terra
Quis do sertão fazer mar.
SEVERINO: Isso é só uma gaivota
Meu beato Zé Lourenço!
BEATO: É um pássaro, Severino,
Capaz de um vôo imenso.
SEVERINO: Brincando tanto com bicho,
O compadre perde o senso.
BEATO: Bem vindo seja, compadre,
Em nome da Mãe das Dores.
SEVERINO: Volto alegre, Zé Lourenço.
Aqui deixei meus amores.
BEATO: Pois abrace sua mulher,
Que lhe recebe com flores.
SEVERINO: Quanta saudade, Joaquina,
Nossos filhos, onde estão?
JOAQUINA: Esperando Severino,
Como todo o Caldeirão.
SEVERINO: Aqui a vida prospera,
No trabalho e na oração!
BEATO: No sertão de sofrimento
O Caldeirão é uma ilha.
Comparado à redondeza
Aqui reina a maravilha.
ISAÍAS: Mas a inveja já prepara
Suas calúnias e armadilhas.
SEVERINO: Esta aqui é do Rio Grande,
A professora Marina.
Na cartilha do abecê,
A toda gente ela ensina.
BEATO: A menina aqui chegou
Guiada por mão divina.
MARINA: Meu beato José Lourenço
Vim cumprir a minha sina.
BEATO: Enquanto houver injustiça
Nossa missão não termina.
MARINA: A combater o pecado
Minha vida se destina.
BEATO: (Para todos) Quem for chegado me ouça
O Caldeirão os recebe
Sem perguntar o que são.
Todos bebem onde um bebe
É a primeira diferença
Que o forasteiro percebe
Ao pisar o nosso chão.
Pois tudo é compartilhado
Da fartura à privação.
Deixe a preguiça de lado
Cante um bendito e então
Vá trabalhar no roçado.
Isaías tome de conta
Desse povo flagelado.
Vou prosar com Severino
Há pouco tempo chegado,
Pra saber das novidades
Desse sertão atrasado.
ISAÍAS: (Para os recém-chegados) A seca deu prejuízo
O tempo tá bem difícil.
Vamos fazer mutirão,
Cada qual no seu ofício,
Pra ver se arranca a pobreza
De tão grande precipício.
No Caldeirão se precisa
De ourives e carpinteiro
De costureira e louceiro
E muito mais de roceiro.
Que santeiro se apresente
Também seleiro e ferreiro.
JOAQUINA: Vamos fazer rapadura,
Plantar feijão e fruteira.
No Caldeirão se fabrica
Alfenim, mel de primeira,
Se faz açude, e verdura
Se planta na ribanceira.
Por sua casa de farinha,
Por seu tear de tecido,
Por seu engenho de cana,
Caldeirão é conhecido,
Como terra de trabalho,
Lugar santo e prometido.
MARINA: Estou disposta, Joaquina,
A trabalhar no pesado,
Pois sou papa jerimum,
Sei tratar bem com o gado,
Criar carneiro e cabrito
Plantar milho no roçado.
JOAQUINA: Marina, deixe de pressa
Você é quase doutora
Nesse chão de analfabetos.
Melhor do que ser pastora
Vai ser abrir uma escola
Onde será professora.
APRESENTADOR: Enquanto Isaías instruía
Os novatos da irmandade.
Do trabalho e da oração
Mostrando a necessidade,
José Lourenço matava,
com Severino, a saudade.
SEVERINO: Comentam lá no Juazeiro
Que o Padre Cíço vai mal,
Que aquele santo romeiro
Logo encontra o seu final.
Pro seu sono derradeiro
Já preparam o enxoval.
BEATO: Essa notícia é fatal
Severino, meu compadre.
É nossa melhor defesa
Aquele bendito Padre.
Sem ele pra nos valer
Tenho medo que o cão ladre.
SEVERINO: O povo do Meu Padrinho
Já começa a se afligir.
BEATO: Se ele morre, Severino
A guerra vai explodir.
Para a nação de romeiro
Muita desgraça há de vir.
SEVERINO: A perseguição, meu Beato,
Ao Caldeirão vai voltar.
E de um tal comunismo
Já se começa a falar,
Dizendo que tal regime
Queremos aqui adotar.
BEATO: A injustiça, Severino,
Que faz da vida uma fera,
Tem medo que no planeta
Se espalhe a primavera,
Este mutirão de pobre,
Que no Caldeirão prospera.
CENA 4: (Anúncio da Morte do Padre Cícero)
ROMEIROS: (Cantam) No ano de trinta e quatro
No Juazeiro do Norte
Meu Padrim Ciço Romão
Encontrou o fel da morte
Deixando o povo romeiro
Abandonado da sorte.
Cego, de noventa anos
Numa madrugada fria
Ele entregou sua alma
Aos pés da Virgem Maria
Enquanto o povo romeiro
De negro véu se cobria.
Coro de beatas: Quando Meu Padrinho caiu
Foi de cabeça no chão.
O choro do Meu Padrinho
Rolava assim de roldão
Uma dor no peito, um grito
De partir o coração.
Foi um urro só, do povo,
Naquela noite fatal
Feito um rugido de fera
Um gemido de animal,
Foi como o chão se partindo
Aquele juízo final.
CENA 5 : (Repercussão da morte do Pe. Cícero)
Apresentador: Mal Meu Padrinho morreu,
Depressa, as autoridades
Trataram de disputar
Seus bens e propriedades,
Coisas que o povo lhe dava
Para fazer caridade.
Bispo: Sou o Bispo do Crato e digo,
Do Padre Cícero, a herança,
À Diocese, pertence,
Onde seu corpo descansa.
Deputado: Mesmo que com heresias
Tenha feito essa poupança?
Bispo: Nas graças da Santa Igreja,
O velho padre morreu.
Foi no último momento
Que ele se arrependeu
De todas as heresias
Que em vida cometeu.
Deputado: Mas não foi a própria Igreja
Que suas ordens suspendeu?
Bispo: E foi também ela mesma
Que seu perdão concedeu,
Por mãos de um santo padre
Que na morte lhe atendeu.
Deputado: Acontece, Senhor Bispo
Que antes do passamento,
A herança do Padre Cícero
Foi passada em documento
À Ordem dos Salesianos
Conforme seu Testamento.
Bispo: Mas por isso não tem briga
Com padre salesiano.
Afinal, nos bens do morto
Pra manga tem muito pano.
Não fica bem a discórdia
Em assunto tão mundano.
Deputado: Concordo, Reverendíssimo.
Afinal, são obras pias
O destino da botija.
Do morto, as economias,
Serão com zelo cuidadas,
Lhe dou todas garantias.
Primeiro, nós precisamos
Ter a riqueza na mão.
Principalmente os terrenos,
Como o do tal Caldeirão
Pra negociar sem medo
De qualquer contestação.
Apresentador: Enquanto o Bispo falava
Com o doutor deputado,
Que dos tais salesianos
Era um bom advogado,
A conversa foi chegando
Na cozinha do bispado.
Apresentador: Foi quando Vicença Beata
Que o barulho escutava
Saiu dos seus afazeres
Pra ver o que se falava
Do Caldeirão do Beato
Onde sua gente morava.
Vicença: Seu Bispo me dê licença
Mas ouvi na mercearia
Que o Beato vai pedir
Por toda benfeitoria
Que fez lá no Caldeirão
Indenização um dia.
Bispo: Indenização de que?!
Êita que negro atrevido!
Deputado: Deixe comigo, Seu Bispo.
A negro não dê ouvido.
Do Caldeirão, esse negro
Vai ter que sair corrido.
Vicença: Mas Seu Bispo, o Caldeirão
É hoje quase cidade.
São mais de cinco mil almas
Convivendo em irmandade.
Deputado: Então eu boto a polícia
E ele corre de verdade.
Vicença: Depois que morreu o padre,
Ao Caldeirão, todo dia
Chega gente em romaria.
Deputado: Dou um fim nessa anarquia.
Boto tropa, bombardeio,
Chega de tanta folia.
Bispo: Dona Vicença, a senhora
Tá puxando pelo Beato?
Vicença: Não, Seu Bispo, quem sou eu!
Só estou contando o fato.
Se o senhor me dê licença,
Vou tratar daquele pato.
Deputado: O que é isso, Vicença!?
Conte mais o que se diz.
Vicença: No Caldeirão chega gente
Vinda de todo o País,
A mando de Severino,
Do Beato, um aprendiz.
Deputado: Esse tal de Severino
É um cabra perigoso.
Bispo: Dizem que fala bonito,
Tem parte com o Tinhoso.
Deputado: E o Beato, Sá Vicença?
Aquilo é negro manhoso!
Bispo: Se serve do Padre Cícero
Passando por sucessor.
Vicença: Mas Seu Bispo, o Beato
É muito trabalhador.
Bispo: Ele, do trabalho alheio,
É grande aproveitador.
Vicença: O produto do trabalho,
No Caldeirão se divide.
Deputado: Lá, todo mundo trabalha
E só o Beato decide,
Fica com a melhor parte,
Ele sozinho progride.
Vicença: O Beato é diligente,
Homem prático e moderno.
Deputado: Aquele negro boçal
Só quer ser gente, de terno.
Bispo: Mas, olhe, o negro queria
Que eu fosse naquele inferno
Rezar missa e batizar
Numa capela de palha.
Deputado: Meu Deus, de tanta heresia,
Nossa Senhora nos valha.
Bispo: Pra nutrir luxo de negro
Aquela gente trabalha.
Deputado: Vicença, será verdade
Que o negro é todo cortês?
Que tem lá umas meninas
Para servi-lo por mês?
Bispo: Ouvi dizer que o negro
Usa perfume francês.
Vicença: Num sei disso não, Seu Bispo.
Bispo: Que num sabe, Sá Vicença!
Se contar ou não contar
Não vai haver diferença.
De todo jeito a igreja
Caça do negro a licença.
CENA 6: (Enquanto isso, no Sítio Caldeirão.)
Coro de Romeiros: Já chegou o tempo das víboras
Estação da Besta-Fera
A tormenta da agonia
O terror do fim da era.
Já chegou o tempo do fogo
Crepitando sobre a terra.
Acudi, povo romeiro,
Que a morte nos espera.
Marina: Tive um pressentimento
Que foi preso, Severino.
Joaquina: Se verdade, sou capaz
De cometer desatino.
Marina: De todo o povo romeiro
Eu temo pelo destino.
Joaquina: Severino advertia
Para perigos futuros
Que a Besta-Fera haveria
De levantar os seus muros.
Do Caldeirão, a fartura
Iria nos cobrar com juros.
CENA 7: (Chefatura de Polícia.)
Apresentador: Severino Conselheiro
Andava pelas estradas
Chamando o povo romeiro
Para a terra consagrada
Quando a polícia o prendeu
Ao longo da caminhada.
O levou preso, algemado
Pra Capital, Fortaleza
Onde o tenente Bezerra
O tratou sem gentileza
Tendo, ao Chefe de Polícia
Lhe entregado como presa.
Zé Bezerra:
Senhor Chefe de Polícia
Eis aqui o nosso santo.
Chefe de Polícia:
Mais parece comunista
Escondido nesse manto.
Zé Bezerra:
É o tal de Severino
Que nós procuramos tanto.
Severino:
Os castigos do Céu tardam
Mas não faltam, Capitão.
Chefe de Polícia:
O cabra chegou valente
E coberto de razão.
Zé Bezerra:
Deixe que amanso o bruto
Com chibata e safanão.
Chefe de Polícia:
Tenha calma, Zé Bezerra,
Não bote o carro adiante.
Dizem que, no Caldeirão,
Severino era importante.
Zé Bezerra:
Pois aqui ele vai ver
Como se trata um farsante.
Chefe de Polícia:
Cuide então, José Bezerra,
De tratar bem esse peste.
Zé Bezerra:
Ele reclama de tudo
Da dormida e do que veste.
Chefe de Polícia:
Trate então de lhe arranjar
cama que ele não conteste.
Zé Bezerra: Vou lhe arranjar dormida
Melhor que prata e que ouro.
Do Caldeirão do Beato
Vou trazer grande tesouro,
O cavalo Trancelim
Pra fazer cama de couro.
Curto o couro, faço a cama
Trago pra ele dormir.
Vai ser melhor, Severino
Do que cama de faquir.
Chefe de Polícia:
Mas o Beato não permite
No seu cavalo bolir.
Dizem até que ele é santo
E do Beato parente.
Severino:
Trancelim é só um bicho
Manso, bruto e inocente.
Zé Bezerra:
Dobre a língua, cabra sujo
Quando falar com Tenente.
Severino:
Falo como Deus permite.
Chefe de Polícia:
Ele sabe responder!
Zé Bezerra:
Pois me diga, santo bruto
O que estava a fazer
Lá no Rio Grande do Norte
Parecendo se esconder?
Severino:
De nada fujo, Tenente.
Ao contrário, vou ao encontro.
Chefe de Polícia:
Você anda em todo canto,
Deixando o Tenente tonto.
Nos Estados do Nordeste
Nunca está no mesmo ponto.
Severino:
Ando aconselhando o povo
Para os fatos que virão.
Zé Bezerra:
Explique, no comunismo,
A sua participação.
Severino:
Sou seguidor e devoto
Do santo do Caldeirão.
Zé Bezerra: Deste tal de Zé Lourenço
Subversivo de primeira
Que o comunismo planta
Por entre a gente roceira?
Severino: No Caldeirão, comunismo
Não há nem de brincadeira.
Chefe de Polícia:
Soube que no Caldeirão
A igualdade se pratica?
Severino:
Como pregou Jesus Cristo.
E na Bíblia se publica.
A exploração da pobreza
É o que mais prejudica.
Chefe de Polícia:
Seu conselheiro quadrúpede,
Isso é puro bolchevismo.
Uma mistura esquisita
De reza com comunismo.
Severino:
Seu Capitão, essa lei
Chamo de cristianismo.
Chefe de Polícia:
Veja, Tenente, as idéias
Que no Caldeirão se ensina.
Zé Bezerra:
Pois vou lá ver como vive,
Essa gentalha cretina,
Disfarçado de empresário
Oferecendo propina.
Depois boto fogo em toda
Essa desobediência.
Chefe de Polícia:
Para cumprir sua missão
Tome toda providência.
Severino:
Quem destrói um lugar santo
A Deus não deve temência.
Zé Bezerra:
Que lugar santo que nada
Lá é coito de bandido.
Chefe de Polícia:
Leve de volta esse bruto
Antes que fique sabido.
Dê três pisas no safado
Por me haver respondido.
Corte sua barba nojenta
Lhe ponha na solitária
Bem longe dos comunistas
Essa nação salafrária.
Que tem conversa bonita
Para enganar gente otária.
CENA 8: (Palácio do Governo)
Apresentador:
No Palácio do Governo
O Caldeirão é o mote.
O Interventor Pimentel
Arma também o seu bote.
Com sua mulher, conversando,
Já pensa em dar um calote.
Interventor:
Indenização, que nada.
Veja quanta pretensão!
O Governo é soberano
Pra dirigir a nação.
À plebe cabe cumprir
O que manda a direção.
Mulher do Interventor: Pois então, meu bom marido
Pau nessa gente canalha.
Do exército e da polícia,
Da aeronáutica se valha.
E da marinha também.
Interventor:
Veja se não avacalha
Mulher, nossa expedição.
No Caldeirão não tem mar
Pra chegar embarcação.
Mulher do Intervento:
Um jeito há de se achar
Abra um canal, faça um desvio
Para o navio lá chegar.
Interventor:
E por isso que eu digo:
Governar é para elite.
A massa comum necessita
de alguém que ordens lhe dite.
Antes que em um buraco
A louca se precipite.
Mulher do Interventor:
O que lhe falta, marido,
É decisão e vontade.
A canalha comunista
Com toda ferocidade
Se disfarça de beato
Para atacar a cidade
E você vem nessa calma
Falar de filosofia.
Zé Bezerra (Chegando):
Me desculpe, Interventor
Devo entrar nessa porfia
Pra dizer que sua mulher
Tem razão no que dizia.
Interventor:
Fale, então, José Bezerra
Já que entrou de enxerido.
Zé Bezerra:
Não se engane, Interventor,
porque foi advertido:
Só se extingue o banditismo
Sem dó, matando o bandido.
São fanáticos, senhor,
Bandos de loucos varridos.
Comedores de crianças
Em romeiros travestidos.
Mulher do interventor:
Pau neles, meu maridinho!
Cacete nesses bandidos!
Interventor:
Tenho de ser ponderado
Sou o cabeça pensante.
Mulher do Interventor; Com tanta vacilação
Governo não vai avante.
Vai deixar que no Brasil
O comunismo se implante?
Zé Bezerra:
O Beato é um farsante
Do Governo inimigo.
Pra ordem constituída
O Caldeirão é perigo.
Basta o senhor ordenar
Vou por lá mato e persigo.
Corto cabeça e umbigo.
Defendo a propriedade
Contra todo fanatismo.
O Caldeirão é cidade
Sem dono, muro ou cercado
Que a vizinhança invade.
Mulher do Interventor:
Fazenda sem fazendeiro
Um atentado ao pudor.
Lá ouro, prata e dinheiro
São figuras sem valor.
Interventor: Tá bom, estou convencido.
Chega de tanto estupor.
Mas tenha muito cuidado
Que do Rio Grande do Norte
Lá o povo é maioria
Gente da terra do Forte
Na revolta comunista
levantou guerra de morte
Contra o bom capitalismo
Depois quem sabe fugiu
Pra terra do fanatismo.
De romeiro se fingiu
Pra promover comunismo
Onde ninguém nunca viu.
Zé Bezerra:
Seu doutor andei por lá
Fazendo levantamento,
Um estudo militar
Sobre o tal arranchamento,
Disfarçado de empresário
Pra melhor discernimento
Das fileiras do inimigo
Para o perigo medir
De um ataque planejado.
Concluí que invadir
Não vai ser muito difícil
Mesmo se alguém resistir.
Mulher do Interventor:
Isso, Tenente Bezerra,
Mostre ser um cabra macho.
Meta o pau nesses capachos
O que tiver ponha abaixo
Mas não volte com desculpas
Senão a cara eu lhe racho.
Zé Bezerra:
Então, Seu Governador,
O que me manda fazer?
A invasão do tal reduto
Devo eu logo proceder?
Interventor:
Claro, palerma, depressa
Não viu a mulher dizer!
CENA 9: (Caldeirão, no dia da invasão.)
Apresentador:
E lá foi Zé Bezerra
Invadir o Caldeirão
Levando tropa de choque
Rifle, fuzil e canhão.
Mas teve grande surpresa
No momento da invasão.
Coro de romeiros:
Minha Pedra cristalina
Que no mar tem sua guarda
Defendei-me da batina
Que se junta com a farda.
Treme a terra aos solavancos
Antes que vire um jardim
Que tremam meus inimigos
Quando olharem para mim.
Ó manto da Mãe das Dores
Traga meu corpo fechado
Em nome das cinco chagas
De Jesus crucificado.
Que bala não me atinja
Nem me penetre a espada
Aos sete gritos da Besta
Eu tenha a boca trancada.
Zé Bezerra:
Calem a matraca, bando
De cabras excomungados.
Aqui tem bala pra matar
Dez covis de condenados.
Batam palmas que aí vem
O Chefe dos Delegados.
O Capitão de Polícia
Do Exército, a Excelência.
Louca:
Palmas pro Chefe dos Diabos
Capitão da Truculência.
Chefe de Polícia:
Em quem falou, meto bala
por tamanha impertinência.
Louca:
Sinto cheiro de enxofre
De poder, terra e dinheiro.
Zé Bezerra:
Atirem nessa mulher
Ou em qualquer desordeiro.
Isaías:
Ela é louca, inocente.
Atirem em mim primeiro.
Louca:
Das suas ventas sai fumaça
Capitão de Lúcifer.
Isaías:
Ela fala o que não pode.
Chefe de Polícia:
Amarrem essa mulher.
Mesmo a louca, é proibido
Sair falando o que quer.
Prendam feito um bicho bruto,
De matar não é a hora.
E você cabra atrevido
É quem vai falar agora,
Do Beato o paradeiro.
Louca:
Deu no pé e foi embora.
Zé Bezerra:
(Para os soldados)
Entope a boca da bicha.
Louca:
De rixa não tenho medo.
Isaías (para Marina)
Corra e diga pro Beato
Mas guarde bem o segredo.
Zé Bezerra:
Quem fizer qualquer loucura
Mando embora pro degredo.
Isaías: (Para Marina)
Arranje qualquer pretexto
E ganhe o rumo dos matos.
Soldado: (Chegando)
Olhe, Tenente, o que achei
Vivendo junto dos patos!
Uma gaivota branquinha
E esse espalhador de boatos.
Papagaio:
Beato Lourenço deduá,
Otissali aliou.
Chefe de Polícia:
Cuidado José Bezerra
O papagaio falou..
Zé Bezerra:
Cuidado Seu Capitão
Que a gaivota arribou.
Marina: (Antes de correr atrás da
Capitão, deixe que eu
Gaivota)
Pego essa bicha danada.
Isaías:
Aqui temos muitas aves
Todas de raça ensinada.
Soldado:
A mulher fugiu pro mato
Numa carreira embalada.
Chefe de Polícia:
Filha da puta nojenta!
Papagaio:
Beato José Lourenço...
Zé Bezerra:
Mata esse bicho fajuta.
Isaías:
Bicho bruto não tem senso.
Zé Bezerra:
Corre atrás daquela puta.
Soldado:
Tenente, é mato imenso!
Zé Bezerra:
Mas corre de qualquer jeito.
Soldado:
O papagaio danou-se.
Zé Bezerra:
Corre atrás dele também.
Soldado:
A mulher evaporou-se.
Chefe de Polícia:
Ninguém corre atrás de nada.
A confusão acabou-se.
(Para os romeiros)
Quem vai correr são vocês.
Vai todo mundo de volta
Pra terra donde vieram.
Junto coloco uma escolta
Porque quero ter certeza
Que não vai haver revolta.
Joaquina:
Caldeirão é nossa casa.
Chefe de Polícia:
Mas não a partir de agora.
Peguem os seus possuídos
Que vai todo mundo embora.
Peguem ligeiro, depressa,
Que eu não quero demora.
Isaías:
Aqui nada é de ninguém
Porém tudo é de todos.
Chefe de Polícia:
Estou lhes dando uma chance.
Não me venham com engodo.
Zé Bezerra:
Capitão, se quiser eu
Afundo todos no lodo.
Joaquina:
De nossa terra já viemos
Pra lá ninguém vai voltar.
Pois lá terra ninguém tinha
Nem casa para morar.
Chefe de Polícia:
Se não querem os senhores
Comigo colaborar
Vou deixar o Zé Bezerra
Resolver esta parada.
Zé Bezerra:
Comigo é na facada
Na bala e na cacetada.
Deita no chão todo mundo
Gente ruim é na porrada.
Louca: (Entre gargalhadas)
Obrigada, meu padrinho!
O Cão Coxo vai saber.
Zé Bezerra:
Deita cambada de peste
Pra todo mundo morrer.
Meto bala no primeiro
Que me desobedecer.
Coro de Romeiros:
Ó manto da Mãe das Dores
Traga meu corpo fechado
Em nome das cinco chagas
De Jesus crucificado.
Zé Bezerra:
Calem a boca seus bostas.
Retalho vocês em postas!
Coro de Romeiros: (Mais forte)
Que bala não me atinja
Nem me penetre espada
Aos sete gritos da Besta
Eu tenha a boca trancada.
Chefe de Polícia:
Baixe as armas, Zé Bezerra.
Acabou a brincadeira.
O Caldeirão do Beato
Vai virar uma fogueira.
Agora serão jogados
Fora de qualquer maneira.
O Caldeirão vai arder
Feito fogueira medonha.
O que vai haver aqui,
Nem mesmo o Diabo sonha.
Isaías, pra começar,
Todas as armas deponha.
Isaías:
Aqui nós só possuímos
Pro trabalho, ferramentas.
Chefe de Polícia:
Mas deponham mesmo assim
Embora sejam seiscentas.
E não venham me dizer
Que são todas elas bentas.
(à parte)
Esse povo sem trabalho
se tornará vagabundo.
Eis então mais um motivo.
Pra dispersar todo mundo.
Dar um fim e terminar
Com esse covil imundo.
Zé Bezerra:
E aquele negro safado,
Vai escapar, Capitão?
Chefe de Polícia:
Primeiro, faz-se a limpeza
Deste sujo Caldeirão,
Depois se toma o caminho
Pra perseguir o fujão.
Zé Bezerra:
Já não espero o momento
De pôr a mão no Beato.
De lhe cortar a cabeça,
De lhe arrancar o fato.
Fugir das autoridades
É, do negro, um desacato.
CENA 10: (No alto da serra do Araripe.)
Apresentador:
Enquanto isto na Serra,
Onde o Beato se guarda
Com um grupo de romeiros
E pela justiça aguarda,
Severino Conselheiro
A chegar ali não tarda.
Com mais de duzentos homens
Vem disposto para a luta.
Enfrentar a Besta Fera
Numa sagrada disputa.
Chama o povo pro combate,
Mas o Beato reluta.
Beato:
Paciência, Severino,
Pra isso existe a Justiça
Os homens são poderosos
O Governo não se atiça.
Você não mede o veneno,
Nem a força da cobiça.
Severino:
Na Justiça não confie
Tanto, meu santo Beato.
Na verdade, pouco enxerga
Mas não é cega de fato
Pois se ao rico protege
Ao pobre joga no mato.
Beato:
Se estamos com a razão
A verdade vem à luz.
Mesmo a nobre violência
Só violência produz.
Pela fé na Mãe das Dores
É sábio quem se conduz.
Severino:
Vi Isaías torturado
Nas prisões de Fortaleza.
Vi seu povo ser trancado
Sem água, pão ou defesa.
Mulheres escravizadas
Nas residências burguesas.
Beato:
E você, por que foi solto,
Conselheiro Severino?
Severino:
Porque me passei por besta,
Sendo sabido e ladino.
O tal Chefe de Polícia
Me julgou ser um cretino.
Prometi na Detenção
Não voltar pro Juazeiro.
Beato:
E por que assim voltou
Severino Conselheiro?
Severino:
Voltei pra serra, Beato,
E não pro centro romeiro.
Vim pra junto do meu povo
Lutar por minha irmandade.
Trouxe gente, mantimentos
E notícias da cidade.
Se prepara um batalhão
Com toda ferocidade
Para encontrar o refúgio
Do Beato aqui na serra.
Marina:
Meu Padrinho me proteja,
Vai começar outra guerra!
Beato:
Eu não fico, Severino,
Vou procurar outra terra.
Meu Padrinho aconselhou:
Se lhe perseguirem corra,
Com toda a força do pé.
Não deixe que ninguém morra.
E quem quiser vir comigo
Que da pressa se socorra.
Severino:
Um dia, o homem precisa
Parar de viver fugindo.
Eu fico, José Lourenço,
Pela serra resistindo.
Feito uma onça acuada
Pela Justiça punindo.
Beato:
Me retiro, Severino,
Pra buscar outro lugar,
Onde possa botar roça,
Um engenho levantar.
É o que pode fazer
Quem não sabe guerrear.
Severino:
Meu bom e santo Beato,
Aqui a gente se aparta.
Espero que terra encontre
Com roçado e mesa farta.
Se tiver lugar pra pobre
Mande dizer numa carta.
Beato:
Veja o que faz, Severino,
Com essa gente romeira.
Você sabe que o Governo
Não está pra brincadeira.
Até a grande Canudos
Transformou em bagaceira.
Severino, o bom caminho
Quase sempre é distante.
Marina:
Fugindo, sempre fugindo,
Não se pode ir avante.
Quero viver sossegada
Não feito judeu errante.
Caldeirão e Baixa d’Anta
Foram trabalhos em vão.
Quando a roça está bonita
Se abandona a plantação.
Quantas vezes nós devemos
Sair sem nada na mão?
Beato:
Quantas vezes for preciso
Como a prudência ensina.
Vou embora pois aqui
Já cumpri a minha sina.
(Saindo)
Deus o guarde, Severino
Te dê juízo, Marina.
Marina:
A irmandade vai ficar
Com o irmão Severino.
Do povo pobre e sofrido
Pode ser outro o destino.
Severino:
Pra luta vai ser preciso
Muita coragem e tino.
Vamos chamar Zé Bezerra
Lhe fazer uma armadilha
Antes que chegue o restante
Daquela bruta quadrilha,
Com tropas, metralhadoras,
E, de cães, uma matilha.
(para Marina)
Vá reunir as mulheres
Que, dos homens, me encarrego.
Marina, vamos lutar.
À polícia, não me entrego.
A espada da igualdade
E da justiça eu carrego.
Coro de Mulheres:
(Canta)
Meu Padrim disse a José:
Se lhe perseguirem, corra
Com toda a força do pé.
Mas chegou um Severino
E disse pra Zé Lourenço:
Eu não corro, fico e venço.
Eu não corro, fico e venço.
CENA 11 : (Tocaia no alto da Serra do Araripe.)
Apresentador:
Severino armou seu plano
A Zé Bezerra atraiu
Lhe emboscando na serra.
Como um pato ele caiu
Depois fez espalhafato
pra saber quem lhe traiu.
Coro de romeiros: (Fora de cena)
Minha Pedra Cristalina
Que no mar tem sua guarda
Defendei-me da batina
Que se junta com a farda.
Treme a terra aos solavancos
Antes que vire um jardim
Que tremam meus inimigos
Quando olharem para mim.
Ó manto da Mãe das Dores
Traga meu corpo fechado
Em nome das cinco chagas
De Jesus crucificado.
Que bala não me atinja
Nem me penetre espada
Aos sete gritos da Besta
Eu tenha a boca trancada.
Zé Bezerra (Montado num cavalo)
Soldados, estou montado
No cavalo Trancelim.
O cavalo do Beato
É santo mas vai ter fim.
Vou lhe arrancar o couro
Para fazer um selim.
Anda cavalo de merda
Quem lhe monta agora é branco.
Para a mim obedecer
Se precisar eu lhe espanco.
Vou fazer você correr
Até que fique bem manco.
Vou trazer o tal Beato
No seu traseiro escanchado.
Vou mostrar quem é seu dono
Filho de negro safado.
Me ensine já o caminho
De prender o celerado.
Vamos cavalo molenga
Não diz que é santo do céu!
Vou pegar a romeirada
Fazendo muito escarcéu.
E mandar tudo pra longe
Muito além do beleléu.
Marcha, porra de cavalo,
Anda, merda, se alevanta.
Não se treme, coisa ruim.
Tua carne não era santa!
Vai ver que morreu o peste
Pois nem com grito se espanta!
Severino:(Chegando com seus pares)
Abre os olhos, Ferrabrás
Prepara bem a tua lança
Que em missão de justiça
Os Doze Pares de França
Vieram em guerra cumprir
De Trancelim a vingança.
Zé Bezerra:
(Saindo do cavalo)
Já matei muita criança
Beato matei aos milhares.
Tenho trinta Capas Verdes
Para enfrentar os teus pares.
Minha força de gigante
Te fará sumir nos ares!
Marina:
Será melhor te guardares
De alardear valentia
A morte aqui já se alastra
Como um tonel de sangria
Desatada por punhal
Da mais fria lâmina fria.
Zé Bezerra:
Pra vencer essa porfia
Tenho a força do dinheiro
O poder dos armamentos
Cobra de bote certeiro.
De comunista e beato
Limpo a terra por inteiro.
Romeiro:
Sou Roldão e Oliveiros
Sou o povo em irmandade.
O brilho da minha espada
É revolta sem idade,
É clarão de fio cortante
Como o aço da verdade.
Romeira:
Prova, monstro de maldade
Esta navalha desnuda.
Sente o gosto da derrota
Nessa tua carne absurda
E saibas que o povo pobre
Toda injustiça ainda muda.
CENA 12 : (Sítio Caldeirão)
Apresentador:
Morreu Tenente Bezerra
Nas mãos do povo romeiro.
Daí então a polícia
Armou um plano certeiro,
Para vingar a sua morte
Com avião bombardeiro.
Invadiu a serra inteira,
Prendeu gente e espancou..
Com metralha e tiroteio
Muita munição gastou.
Segundo contam na serra
Mais de mil ela matou.
Mas não prendeu o Beato
Muito menos Severino,
Que fugiu para a Bahia
Sem se saber o destino,
Junto com sua romeirada,
Homem, mulher e menino.
Quem não fugiu foi detido,
Pela Polícia foi preso.
Sofreu nas mãos dos soldados,
Feito num Inferno aceso,
Que torturavam sem dó
O cidadão indefeso.
Sebastião:
(Canta)
Salve o Rei Sebastião
em seu corcel encantado,
com espada de justiça
o povo pobre irmanado.
Contra ele se levantam
Os poderosos em fúria.
Satanás com seu dinheiro
Arma trezentas centúrias.
Soldado:
Sebastião, seu safado,
Traidor filho da puta
Você levou o Tenente
Pra morrer nessa disputa.
Foi uma cilada, soldado!
Prenda o bicho a força bruta.
Mulher:
Botando pelas narinas
Bala e fogo, a Besta-Fera
Lançou de seus aviões
Bombas mortais sobre a serra
Enquanto metralhadoras
Avançavam pela terra.
Sargento:
Essa mulher quer fugir
Segurem a pervertida!
Prendam toda gente ruim
Que de preto está vestida.
Tudo é gente do Beato
Ao Satanás convertida.
Menino:
Homens de crânios partidos
Mulheres esquartejadas
Velhos de ventres feridos
Crianças azuis degoladas
Pernas, braços e cabeças
Pela terra ensangüentada.
Sargento:
Prendam também as crianças
Que são agentes secretos
Dos planos de Zé Lourenço
Que todos fiquem quietos
Senão eu prendo e arrebento,
Rebanho de analfabetos.
Vou interrogar a todos
Na base da chibatada.
Leva três tiros na testa
Quem der a resposta errada.
Primeiro, quero saber
Quem armou esta cilada.
Foi você, Sebastião
Confesse, cabra safado
Que levou o Capitão
Para morrer emboscado?
Traidor filho da puta,
Tu vais morrer degolado.
Sebastião:
O senhor tá enganado
À polícia eu ajudei.
Levando até Severino
Com vocês colaborei.
Se já estava avisado
Não fui eu quem avisei.
Sargento:
Pois se você ajudou
De novo vai ajudar.
Diga onde o tal Beato
Na carreira foi parar
E as armas que ele tinha
Para a Polícia atacar.
Sebastião:
Armas, não tinha, Sargento.
Sargento:
Também não havia elemento
Do Beato aqui por perto.
Sebastião:
Garanto que cem por cento
Desse povo é inocente.
Sargento:
Não pense que sou jumento
Seu mentiroso nojento
pois aqui tudo é bandido
Gente daquele safado.
Mulher, menino e marido
Trajando preto fechado
Merece já ter morrido
Seu cabra sujo atrevido
Por ser fanático doente.
Mulher:
Estou de luto por causa
Da morte de um parente.
Sargento:
Tá mentindo, prostituta.
Pensando que sou demente!
Velho:
Você é o presidente
Da nação do tal tinhoso.
Sargento:
Dou um murro nos seus dentes
Seu velho sujo e seboso,
Pra dizer onde escondeu-se
O beato perigoso.
Chefe de Polícia:
Continência, Seu Sargento!
Sargento:
Pronto, senhor Capitão,
Comandante da Polícia!
Chefe de Polícia:
Tá chegando um batalhão
Pra metralhar toda a serra
Por terra e com avião.
Sargento:
Quero ver a procissão
De beato na carreira.
Chefe de Polícia:
Vamos pegar os bandidos
No pau de toda maneira.
Sargento:
Agora o tal Severino
Vai ficar que nem peneira.
Chefe de Polícia:
A Pátria exige vingança
Contra o crime praticado.
O Capitão Zé Bezerra
Foi herói sacrificado.
Pelo Brasil deu a vida
Naquele sujo atentado.
Mas será recompensado
Quem prender o tal bandido.
Todo o Brasil se levanta
Feito um homem só, unido,
Pra lavar com sangue a honra
Do Tenente destemido.
Sargento:
Isso é mais que merecido!
Salve a Pátria brasileira,
O Exército e a Polícia,
Que viva a nossa bandeira!
Guerra contra o fanatismo
Dessa suja cabroeira.
Chefe de Polícia:
Mas onde está esta corja
Pra onde se escafedeu?
Sargento:
Entocaiada na serra,
Quem sabe no pé já deu,
Em direção da Bahia
O fanatismo correu.
Só ficou velho e menino,
Mulher, homem aleijado.
Chefe de Polícia:
Pois vão pagar mesmo assim
Cada qual o seu pecado,
De seguir a Zé Lourenço
O bandido celerado.
Sargento:
Vai todo mundo morrer
Bando de filhos da puta.
Não fica um pra remédio
No final desta disputa.
Vamos vingar Zé Bezerra
Grande herói de nossa luta.
Chefe de Polícia:
Recebi um telegrama
Do Ministério da Guerra
Promovendo Zé Bezerra,
Morto emboscado na serra,
Ao posto de Capitão
Herói invulgar desta terra.
Sargento:
A morte de Zé Bezerra
Estes bestas vão pagar.
Enquanto o tal Severino
Não sei onde foi parar.
Se correu bem já tá perto
De no Sergipe chegar.
Chefe de Polícia:
Ele junto com o Beato
Não perdem por esperar.
Vou botar força volante
Para os dois acompanhar.
Nem que seja no Inferno
Cada qual vai me pagar.
Sargento:
Estou mordido de cobra
Com uma raiva danada.
Alguém vai pagar por isto
E vai ser esta cambada.
Na bala do meu fuzil,
No gume da minha espada.
Tome tiro, velho sujo.
Tome bala, prostituta.
Tome faca, peste ruim.
Vê se cala, velha bruta.
Chefe de Polícia:
Parabéns, caro sargento,
Por sua heróica conduta.
CENA 13: (Cemitério de Juazeiro do Norte, dez anos depois.)
Apresentador:
Quem ficou morreu por via
Daquele sargento maluco.
Outros foram pra Bahia,
Muitos para Pernambuco,
Fugindo da cercania,
Pra não morrer no trabuco.
Distante, recomeçaram,
No meio da multidão,
A luta do povo pobre
Por terra, trabalho e pão,
Inspirados no exemplo
Do sítio do Caldeirão.
Porém, dez anos depois
No Juazeiro do Norte
Encontrou-se aquela gente
Que de escapar teve a sorte.
Foi um encontro feliz
Embora em torno da morte.
Com um sinistro coveiro
Conversava Bernardino,
Um antigo morador
Daquele lugar divino,
Sobre o Sítio Caldeirão
E, do seu povo, o destino.
Coveiro: Então se deu que o beato
Morreu de morte morrida
Pras bandas de Pernambuco?
Bernardino: Por lá armou sua guarida
E foi viver solitário
O que lhe restou de vida.
Fez um sítio: União,
Nome que tanto pregava.
Mas àquela solidão
Ele não se acostumava.
Apartado de sua gente,
O Beato definhava.
Coveiro:
Teve mais sorte porém
Que o povo de Severino.
Perseguido na Bahia
Após combate ferino
Pelas armas da polícia
Encontrou fatal destino.
Dizem que todos morreram!
Bernardino:
Mas do santo conselheiro
Não encontraram o corpo.
Severino era matreiro
Quem sabe anda no mundo
Disfarçado de romeiro,
Pregando, dando conselho,
Como era seu feitio!
Coveiro: Sonhos, Bernardino, sonhos!
O mais puro desvario,
Querer enfrentar a polícia
Com todo seu poderio.
Bernardino: Se fosse a enumeridade
Do povo desse sertão,
A romeirada completa
Do Padre Ciço Romão
Não tinha força no mundo
Que vencesse o Caldeirão.
É por isso que eu voltei
Ao Juazeiro do Norte,
Para contar o romance
Deste povo bom e forte
Que buscou um paraíso
Lutando contra a má sorte.
Coveiro: Encontrar no fim a morte
É a sorte que nos espera.
Bernardino: Por isso quero da vida
Um pomar de quem-me-dera.
Coveiro: Bernardino, isto é um sonho
E todo sonho é quimera.
Bernardino: Beato Lourenço voltando
De novo para o Juazeiro...
Com este dia eu sonhei!
Coveiro: Não quero ser agoureiro
Meu compadre Bernardino,
Mas ele vem prisioneiro
Da morte, o Beato Lourenço,
E da vida vem liberto.
Bernardino: Ele vem com a Irmandade
Da Santa Cruz do Deserto,
Com sua gente peregrina.
Seu coração vem aberto...
Quase dez anos depois
Daquela maldita guerra
Ele volta com seu povo
Pra vir morar em sua terra.
Coveiro: Mas num caixão, com certeza
Daqui a pouco se enterra.
Bernardino: Eu já ouço as incelenças
Sinto o cheiro do incenso.
Vem encontrar o seu povo,
Vem desfraldar o seu lenço.
Vem fazer festa bonita
O Beato José Lourenço.
Logo desponta na estrada
O cortejo penitente.
Anjo (canta anunciando) Num andor vem conduzido
Pelos braços de sua gente
De louvores vem vestido
Feito menino inocente
Meu Beato peregrino
Meu boizinho de brinquedo
Te alevanta, meu menino
Vem brincar nesse folguedo.
Vem juntar o povo pobre
Perfumar o seu delírio
Com portal de ouro e cobre
Com floral de rosa e lírio.
Num caixão azul marinho
Manjedoura de alegria
Te alevanta Boi Mansinho
Vem brincar nessa folia.
Tu que já tiveste fama
Tu que já tiveste terra
Vem nos reviver o drama
Vem nos recontar a guerra.
Com teu Pastoril profano
Com teu traje de guerreiro.
Te alevanta Boi cigano
Vem brincar nesse terreiro.
Apresentador: Com seus cantos, com suas cruzes
Logo chega a procissão
Com seu mutirão de luzes
Desfazendo a escuridão.
Do Beato Zé Lourenço,
Chega trazendo o caixão.
Romeiros: (Cantam em cortejo) No latifúndio imenso
No mais deserto chão
Beato Zé Lourenço
Plantou o Caldeirão.
Juntando o povo seu
Criou um paraíso.
Adeus, irmão, adeus,
Até o Dia do Juízo.
O sítio ardeu em fogo
Mas ele escapou
Pra sucumbir na água
Da solidão e dor.
Cadê sua Irmandade
Cadê seu paraíso?
Saudade, irmão, saudade,
Até o Dia do Juízo.
*Oswald Barroso - Pesquisador sobre cultura popular, dramaturgo, poeta, produtor cultural.
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